9 de outubro de 2011

As duas civilizações

I

ESTADO DA QUESTÃO

CAPÍTULO I

AS DUAS C IVI L I Z A Ç Õ ES

O Syllabus de Pio IX termina com esta proposição condenável e condenada:

“O Pontífice romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna”.

A última proposição do decreto que se chamou o Syllabus de Pio X, proposição igualmente condenável e condenada, está concebida assim:

“O catolicismo de hoje não se pode conciliar com a verdadeira ciência, a menos que se transforme num cristianismo não dogmático, isto é, num protestantismo sábio e liberal”.

Sem dúvida não foi sem intenção que essas duas proposições receberam, num e noutro Syllabus, este lugar, o último, aparecendo aí como conclusão. Dá-se que, com efeito, essas proposições resumem as precedentes e precisam-lhes o espírito.1

É necessário que a Igreja se reconcilie com a civilização moderna. E a base proposta para essa reconciliação é, não a aceitação dos dados da verdadeira ciência, que a Igreja jamais repudiou, que Ela sempre favoreceu, cujos progressos Ela sempre aplaudiu e para o qual contribuiu mais do que qualquer outra instituição; mas o abandono da verdade revelada, abandono que transformaria o catolicismo num protestantismo largo e liberal, no qual todos os homens pudessem se reencontrar, quaisquer que fossem suas idéias a respeito de Deus, de Suas revelações e de Seus mandamentos. Dizem os modernistas que é apenas através desse liberalismo que a Igreja pode ver novos dias se abrirem diante dEla, obter a honra de entrar nas vias da civilização moderna e marchar junto com o progresso.

Todos os erros assinalados num e noutro Syllabus apresentam-se como as diversas cláusulas do tratado proposto à assinatura da Igreja para essa reconciliação com o mundo, para sua admissão na cidade moderna.

Civilização moderna. Existe, pois, civilização e civilização? Existiu, portanto, antes da era dita moderna uma civilização diversa daquela que o mundo de nossos dias usufrui, ou pelo menos, persegue?

Com efeito, existiu, e existe ainda na França e na Europa, uma civilização chamada civilização cristã.

Que motivo faz com que essas duas civilizações se diferenciem?

Elas se diferenciam pela concepção que têm do fim último do homem, e dos efeitos diversos e mesmo opostos que uma e outra concepção produzem assim na ordem social como na ordem privada.

Jacques-Bénigne Bossuet (Nascido em, 27 de setembro de 1627 - e morreu em Paris, 12 de abril de 1704) foi um bispo e teólogo francês.
“O objetivo último do homem é ser feliz”,2 diz Bossuet. Isto não é exclusivo dele: é o fim para o qual tendem todas as inteligências, sem exceção. O grande orador não falha em reconhecer isso: “As naturezas inteligentes não têm vontade nem desejo senão para sua felicidade”. E acrescenta: “Nada de mais razoável, porque o que há de melhor do que desejar o bem, quer dizer, a felicidade?”3 Assim, encontramos no coração do homem um impulso invencível, que o impele a procurar a felicidade. Se quisesse, não poderia se desfazer dele. É o fundo de todos os seus pensamentos, o grande móvel de todas as suas ações; e mesmo quando ele se atira à morte, é por estar persuadido de achar no nada uma sorte preferível àquela na qual ele se vê.

O homem pode se enganar, e de fato ele se engana muito freqüentemente na busca da felicidade, na escolha da via que deve levá-lo a ela. “Colocar a felicidade onde ela está é a fonte de todo o bem, diz ainda Bossuet; e a fonte de todo o mal consiste em colocá-la onde não é preciso”.4 Isto é tão verdadeiro para a sociedade como para o homem individual. O impulso em direção à felicidade vem do Criador, e Deus nele acrescenta Sua luz para iluminar o caminho, diretamente por Sua graça, indiretamente pelos ensinamentos de Sua Igreja. Mas pertence ao homem, indivíduo ou sociedade, pertence ao livre arbítrio dirigir-se, ir buscar sua felicidade ali onde lhe agrada colocá-la, no que é realmente bom, e, acima de toda bondade, no Bem absoluto, Deus; ou naquilo que têm apenas as aparências do bem, ou que não é senão um bem relativo.

Desde a criação do gênero humano o homem se desviou do bom caminho. Ao invés de crer na palavra de Deus e de obedecer à Sua determinação, Adão deu ouvidos à voz encantadora que lhe dizia para colocar seu fim nele mesmo, na satisfação de sua sensualidade, nas ambições de seu orgulho. “Sereis como deuses”; “o fruto da árvore era bom de comer, belo de ver, e de um aspecto que excitava o desejo”. Tendo assim se desviado desde o primeiro passo, Adão arrastou sua descendência na direção que ele acabava de tomar.

Nessa direção ela caminhou, nessa direção ela avançou, nessa direção ela submergiu durante longos séculos. A história aí está para contar os males que ela encontrou nesse longo extravio. Deus teve piedade dela. No Seu conselho de infinita misericórdia e de infinita sabedoria, Ele resolveu recolocar o homem sobre o caminho da felicidade. E a fim de tornar Sua intervenção mais eficaz, Ele quis que uma Pessoa divina viesse sobre a terra mostrar o caminho por Sua palavra, tocar os homens por Seu exemplo. O Verbo de Deus se encarnou e veio passar trinta e três anos entre nós, para nos tirar da via da perdição e para nos abrir a estrada de uma felicidade não enganosa.

Suas palavras e Seus atos derrubavam todas as idéias até então aceitas. Ele dizia: Bem-aventurados os pobres! Bem-aventurados os mansos, os pacíficos, os misericordiosos! Bem-aventurados os puros! Até a vinda dEle, dizia-se: Bemaventurados os ricos! Bem-aventurados aqueles que dominam! Bem-aventurados os que vivem sem nada recusar às suas paixões! Ele tinha nascido em um estábulo, fizera-Se o servidor de todos, sofrera morte e paixão, a fim de que não se considerassem suas palavras meras declamações, mas lições, as mais persuasivas lições que possam ser concebidas, dadas que eram por um Deus, e um Deus que Se aniquilou por amor a nós.

Ele quis perpetuar essas lições, torná-las sempre expressivas e operantes aos olhos e nos ouvidos de todas as gerações que deviam vir. Para isso Ele fundou a Santa Igreja. Estabelecida no centro da humanidade, Ela não cessou, pelos ensinamentos de seus doutores e pelos exemplos de seus santos, de dizer a todos os que Ela viu passar sob seus olhos: “Procurais, ó mortais, a felicidade, e procurais uma coisa boa; ficai atentos apenas para não procurardes onde ela não está. Vós a procurais na terra, mas não é aí que ela está estabelecida, nem aí que se encontram esses dias felizes dos quais nos falou o divino Salmista: Diligit dies videre bonos... Aí estão os dias de miséria, os dias de suor e de trabalhos, os dias de gemidos e de penitência, aos quais nós podemos aplicar as palavras do profeta Isaías: “Meu povo. Os que te dizem feliz, abusam de ti e perturbam tua conduta”. E ainda: “Os que fazem o povo acreditar que é feliz, são enganadores”. Pois onde se encontra a felicidade e a verdadeira vida, senão na terra dos vivos? Quem são os homens felizes, senão aqueles que estão com Deus? Esses vêem dias bonitos, porque Deus é a luz que os ilumina. Esses vivem na abundância, porque Deus é o tesouro que os enriquece. Esses, enfim, são felizes, porque Deus é o bem que os contenta e que, somente Ele, é tudo para todos”.5

Do século I ao século XIII, os povos tornaram-se cada vez mais atentos a essa pregação, e o número dos que dela fizeram luz e regra de vida foi cada vez maior. Sem dúvida, havia fraquezas, fraquezas das nações e fraquezas das almas.

Mas a nova concepção da vida permanecia lei para todos, lei que os desvios não faziam perder de vista e à qual todos sabiam, todos sentiam que era preciso retornar uma vez que se tivessem afastado. Nosso Senhor Jesus Cristo, com Seu Novo Testamento, era o doutor escutado, o guia seguido, o rei obedecido. Sua realeza era a tal ponto reconhecida pelos príncipes e pelos povos, que eles a proclamavam até em suas moedas. Em todas estava gravada a cruz, o signo augusto da idéia que o cristianismo tinha introduzido no mundo, que era o princípio da nova civilização, da civilização cristã, que devia regê-lo, o espírito de sacrifício oposto à idéia pagã, ao espírito de gozo que tinha construído a civilização antiga, a civilização pagã.

À medida que o espírito cristão penetrava as almas e os povos, almas e povos cresciam na luz e no bem, se elevavam pelo só fato de verem a felicidade no alto e de a carregarem consigo. Os corações tornavam-se mais puros, os espíritos mais inteligentes. Os inteligentes e os puros introduziam na sociedade uma ordem mais harmoniosa, aquela que Bossuet nos descreveu no sermão sobre a eminente dignidade dos pobres. A ordem mais perfeita tornava a paz mais geral e mais profunda; a paz e a ordem engendravam a prosperidade, e todas essas coisas davam ensejo às artes e às ciências, esses reflexos da luz e da beleza dos céus. De sorte que, como observou Montesquieu: “A religião cristã, que parece não ter outro objetivo além da felicidade da outra vida, ainda constrói nossa felicidade nesta”.6 É, ademais, o que São Paulo tinha anunciado, quando disse: “Pietas ad omnia utilis est, promissiones habens vitae quae nunc est et futuraep. A piedade é útil para tudo, possuindo as promessas da vida presente e aquelas da vida futura”.7 Não havia o próprio Nosso Senhor dito: “Procurai primeiro o reino de Deus e Sua Justiça, que o resto vos será dado de acréscimo”?8 Não há aí uma promessa de ordem sobrenatural, mas o anúncio das conseqüências que deviam sair logicamente da nova orientação dada ao gênero humano.

De fato, vemos que o espírito de pobreza e a pureza de coração dominam as paixões, fontes de todas as torturas da alma e de todas as desordens sociais. A mansidão, a pacificação e a misericórdia produzem a concórdia, fazem reinar a paz entre os cidadãos e na cidade. O amor da justiça, mesmo contrariado pela perseguição e pelo sofrimento, eleva a alma, enobrece o coração e lhe proporciona os mais sãos prazeres; ao mesmo tempo eleva o nível moral da sociedade.

Que sociedade, aquela em que as bem-aventuranças evangélicas fossem colocadas sob os olhos de todos, como objetivo a conquistar, e na qual seriam oferecidos a todos os meios de alcançar a perfeição e a bem-aventurança assinaladas no sermão da montanha:

Felizes os que têm espírito de pobreza!
Felizes os mansos!
Felizes os que choram!
Felizes os que têm fome e sede de justiça!
Felizes os que são misericordiosos!
Felizes os que têm o coração puro!
Felizes os pacíficos!
Felizes os que sofrem perseguição por amor da justiça!

São Francisco de Assis | São Domingos de Gusmão | São Luís de França | Santa Elisabete da Hungria

A ascensão, não direi das almas santas, mas das nações, teve seu ponto culminante no século XIII. São Francisco de Assis e São Domingos, com seus discípulos São Luís de França e Santa Elisabete da Hungria, acompanhados e seguidos por tantos outros, mantiveram por algum tempo o nível que havia sido atingido pela emulação que tinham excitado nas almas os exemplos de desapego das coisas deste mundo, de caridade em relação ao próximo e de amor a Deus, que tantos outros santos tinham dado. Mas enquanto essas almas nobres atingiam os mais altos cumes da santidade, muitas outras esfriavam no seu entusiasmo por Deus; e por volta do fim do século XIV, manifestou-se abertamente o movimento de retrocesso que arrebatou a sociedade e que a conduziu à situação atual, quer dizer, o triunfo próximo, o reino iminente do socialismo, fim obrigatório da civilização moderna. Porque enquanto a civilização cristã elevava as almas e tendia a dar aos povos a paz social e a prosperidade mesmo temporal, o fermento da civilização pagã tende a produzir seus últimos efeitos: a procura, por todos, de todos os prazeres; a guerra, para conseguilos, de homem contra homem, de classe contra classe, de povo contra povo; guerra que não poderia terminar senão com o aniquilamento do gênero humano.


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1 Por ocasião da deliberação da lei sobre a liberdade do ensino superior, Challemel-Lacourt disse: “As universidades católicas quererão preparar nos futuros médicos, advogados e magistrados, auxiliares do espírito católico que procurarão sustentar e aplicar os princípios do Syllabus. Ora, a França, na sua grande maioria, considera as proposições condenadas pelo Syllabus como os próprios fundamentos da nossa sociedade”.
2 Meditações sobre o Evangelho.
3 Oeuvres oratoires de Bossuet. Edição crítica e completa, pelo abade J. Lebarq. Sermão para a Festa de Todos os Santos, v. 325.
4 Meditações sobre o Evangelho.
5 Oeuvres oratoires de Bossuet. Sermão para a Festa de Todos os Santos, v. 325.

6 Esprit des Lois, livro XXIV, cap. III.
Tocqueville deu para esse fato uma razão que não é a única nem mesmo a principal, mas que convém assinalar.
“Nos séculos de fé, coloca-se o objetivo final da vida após a vida. Os homens daqueles tempos acostumaram-se, pois, naturalmente, e, por assim dizer, sem querer, a considerar, durante uma longa seqüência de anos, um objetivo fixo em direção ao qual eles caminham sem cessar, e aprendem, mediante progressos insensíveis, a reprimir mil pequenos desejos passageiros para melhor chegarem a satisfazer esse grande e permanente desejo que os aflige. Quando esses mesmos homens querem se ocupar das coisas da terra, reencontram esses hábitos. Eles fixam para suas ações daqui de baixo de preferência um objetivo geral e certo, em direção ao qual dirigem todos os esforços. Não se os vê aplicarem-se cada dia a novas tentativas; mas eles têm desejos não satisfeitos que não se cansam de perseguir. 
“Isto explica por que os povos religiosos têm freqüentemente conseguido coisas tão duráveis. Sucedia que, ocupando-se do outro mundo, tinham reencontrado o grande segredo de obter êxito neste. As religiões fornecem o hábito geral de se comportarem com vistas ao futuro. Nisto elas não são menos úteis à felicidade desta vida do que à felicidade da outra. É um de seus maiores aspectos políticos. Mas à medida que as luzes da fé se obscurecem, a vista dos homens se aperta, e dir-se-ia que a cada dia o objetivo das ações humanas parece-lhes mais próximo.
“Uma vez que se acostumam a não mais se ocupar do que deve acontecer após a vida, vê-se-os recaírem facilmente nessa indiferença completa e brutal do futuro, que é por demais conforme a certos instintos da espécie humana. Tão logo perdem a prática de colocar suas principais esperanças a longo prazo, são naturalmente levados a realizar sem tardança seus menores desejos, e parece que a partir do momento em que desesperam de viver uma eternidade, ficam dispostos a agir como se não devessem existir senão um só dia.
“Nos séculos de incredulidade, é, pois, sempre de recear que os homens se entreguem sem cessar aos azares diários de seus desejos, e que, renunciando inteiramente a obter o que não se pode adquirir senão sem longos esforços, não fundem nada de grande, de pacífico e de durável”.
7 I Tim., IV, 8.
8 Mat., VI, 33.



Fonte: DELASSUS, Monsenhor Henri. A Conjuração Anticristã - O Templo Maçônico que quer se erguer sobre as ruínas da I g r e j a  C a t ó l i c a. Tomo I, Capítulo I – As Duas Civilizações, p.12-15.
 

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