25 de dezembro de 2011

O teológico favorito de J.P.II

URS VON BALTHASAR, O PAI DA APOSTASIA ECUMÊNICA

Chegou a vez de outro representante da "nova teologia", hoje exaltado como "pedra angular da Igreja" (J. Meinvielle), o ex-jesuíta suíco Urs von Balthasar. Se Maurice Blondel encarna o tipo do filósofo modernista e apologeta, se Henri de Luba é o tipo do teólogo modernista, Urs von Balthasar encarna o aspecto pseudomístico e ecumenista do modernismo.

Temos em mãos a obra Urs von Balthasar ? Figura e Opera1, de Karl Lehmann e Walter Kasper, personalidades da "nova teologia". Lemos na orelha do livro: "escrito por seus amigos e discípulos [Henrici, Haas, Lustiger, Roten, Greiner, Treitler, Löaser, Antonio Sicari, Ildefonso Murillo, Dumont, O´Donnel, Guido Sommavilla, Rino Fisichella, Max Shönborn... e Ratzinger], pretende fazer redescobrir toda a importância e o valor de sua obra e de sua pessoa". Descubramo-lo também nós; é de extrema importância.

"Brilhante mas Vazio"

Von Balthasar foi apaixonado, desde a juventude, pela música e, como Montini, pela literatura, mais do que pelos estudos filosóficos e teológicos2. Somente a filosofia "mística" de Plotino teve o poder de fasciná-lo. Ao contrário, a filosofia e a teologia escolástica suscitaram seu horror:

"Todos os meus estudos durante os anos de formação na Ordem dos Jesuítas foram uma luta enfurecida com a desolação da teologia, com o que os homens tinham feito da glória da Revelação; não podia suportar essa figura da palavra de Deus, queria aplicar golpes à direita e à esquerda com a fúria de um Sansão, queria, com sua força, derrubar o templo e nele me enterrar. mas isso era, agora que a missão começava, querer impor meus planos, era viver com minha indignação infinita porque as coisas ficavam assim. Tudo isto eu não dizia praticamente a ninguém. Przywara compreendia tudo, mesmo sem palavras; dos demais ninguém me poderia compreender. Escrevi o "Apocalypse" com essa fúria que se propunha destruir o mundo pela violência e reconstruí-lo a partir das fundações, custasse o que custasse"3

A "missão" do futuro demolidor se esboçava. Pelo momento, o resultado foi que seus estudos na Companhia de Jesus terminaram pela "dupla licença eclesiástica em filosofia e teologia; Balthasar nunca obteve doutorado nessas matérias"4.

Em compensação, porém, o jovem von Balthasar aprendera a correr atrás dos sistemas e tendências agitadas do pensamento moderno, encorajado pelos "grandes animadores da época de seus estudos"5. Erich Przywara, da Universidade de Pullach-Munique, que o forçou a "confrontar Agostinho e Tomás com Hegel, Scheler e Heidegger"6, e Henri de Lubac, da Maison d´études de Lyon Fourvières. "Por sorte e para minha consolação", escreve von Balthasar, "Henri de Lubac morava na casa conosco. Foi ele que, além do material de estudo escolástico, nos levou aos Padres da Igreja e com magnanimidade nos emprestava a nós todos [Balthasar, Daniélou e Bouillard] seus próprios estudos e notas."7 Foi assim que von Balthasar, "durante as aulas, com os ouvidos tapados com algodão, leu todo [Santo] Agostinho" e aprendeu, pelas notas generosamente emprestadas por De Lubac, a opor, com afetação, a patrística à escolástica, cuja linguagem rigorosa não permitia os jogos interpretativos com textos dos Padres da Igreja a que se entregavam os "novos teólogos"8. Ao mesmo tempo, von Balthasar conhecia a poesia francesa: Péguy, Bernanos, Claudel, na tradução dos quais ele trabalhará durante vinte e cinco anos.

No fim de seus estudos, aquele que, segundo De Lubac, seria "o homem mais dotado de nosso século" (outro sistema dos modernistas consiste em criar, uns para os outros, um halo de grandeza inexistente9), leva consigo somente uma poeira, tão vasta quanto superficial, nos domínios que testemunham um verdadeiro diletantismo. O Pe. Labourdette O.P., numa tirada significativa, definiu um dos primeiros artigos de von Balthasar como "uma página brilhante mas vazia"10.

Com esse "defeito de origem", von Balthasar estava pronto para engrossar o número dos eclesiásticos modernistas, "que, sob as aparências de amor à Igreja, absolutamente deficientes em filosofia e teologia sérias, impregnados, ao contrário, até os miolos, de um veneno de erro recebido dos adversários da fé católica, se colocam, sem nenhuma modéstia, como renovadores da Igreja"[ 11.

Privado de sólida formação filosófica e teológica, admirador apaixonado da poesia e da música, von Balthasar misturará, com inacreditável superficialidade, a teologia e a literatura, acreditando poder criar uma teologia "dele" com a mesma imaginação com que um artista cria sua obra de arte.

"Somente mais tarde", escreve ele, "quando o brilho da vocação já me acompanhava havia vários anos e quando eu tinha terminado meus estudos filosóficos em Pullach (acompanhado de longe por Erich Przywara) e os quatro anos de teologia em Lyon (inspirados por Henri de Lubac) com meus condiscípulos Daniélou, Varillon, Bouillard e muitos outros, compreendi como seria de grande ajuda para a concepção de minha teologia o conhecimento de Goethe, Hölderin, Nietzsche, Hofmannsthal e, sobretudo, dos Padres da Igreja, para os quais me dirigiu De Lubac. O postulado fundamental de minha obra Gloria foi a capacidade de ver uma 'Gestalt' [forma complexa] na sua coerente totalidade: a visão goethiana devia ser aplicada ao fenômeno de Jesus (sic) e à convergência das teologias neotestamentárias"12

O Conquistador dos (Mal) Convertidos

Em 26 de julho de 1936, von Balthasar foi ordenado padre na igreja de São Miguel em Munique. Em 1939, fez maisw uma vez os exercícios espirituais de trinta dias, com o padre Steger, que "era, no meio alemão, um dos primeiros a compreender a espiritualidade inaciana, não tanto asceticamente quanto misticamente"13. Esta inclinação pela mística, que já manifestara no contato com a filosofia de Plotino, se revelará cada vez mais nociva para von Balthasar, de tanto que era desprovido de sólida base de saber filosófico e teológico. Pouco depois, encontramo-lo como capelão dos estudantes, em Basiléia, onde cultiva música e poesia (desta vez, alemã). Ele também organiza cursos para estudantes e chama, entre outros oradores, Karl Rahner, Congar e De Lubac; no fim dessas noitadas, "sentava-se ao piano e, de memória, tocava o Don Juan de Mozart" 14.

Em Basiléia, ele encontra o protestante Karl Barth, que se torna (depois de Przywara e De Lubac) "o terceiro grande inspirador da teologia de Balthasar". "A teoria da predestinação de Barth", escreve, "atrai-me poderosa e constantemente" 15; mas a influência decisiva que sofreu foi a do "cristocentrismo radical de Barth"16: daí a idéia de um ecumenismo que reúne todos em torno de Cristo, separado de sua inseparável Igreja, um Cristo que é, no final, o solus Christus de Lutero, ainda que filtrado, como veremos, através de Hegel.

O Vaticano II estava, contudo, ainda longe, e então "o encontro com os protestantes acontecia, nesses anos, na Suíça, de modo quase inevitável (sic) sob a perspectiva da conversão"17.

Foi assim que, em 1940, von Balthasar batizou (a contragosto?) o esquerdista Béguin, que, em 1950, deveria suceder ao filocomunista Mounier na direção da revista Esprit (o Osservatore Romano de 3 de março de 1979 dizia que Beguin e Esprit prepararam o Vaticano II). Fato ainda mais importante, von Balthasar batizará a "convertida" Adrienne von Speyr, médica, casada em segundas núpcias com o professor Kaegi, "mulher cheia de humor e de espírito, de língua afiada, bem-vista na sociedade"18.

Em Basiléia, von Balthasar adquiriu rapidamente o renome de "conquistador de convertidos"19. Parece-nos mais exato dizer dos "mal convertidos". Já citamos Beguin. De Adrienne von Speyr convém dizer mais amplamente que, como De Lubac esteve "em simbiose intelectual" com Blondel, von Balthasar esteve em "simbiose teológica e psicológica" com Adrienne von Speyr 20.

Lado a Lado com Adrienne

"Logo depois da conversão [de Adrienne] começaram a crescer os boatos de milagres que, manifestamente, aconteciam durante os colóquios e visitas que ela recebia. Murmurava-se sobre visões que ela tivera." Murmurava-se também sobre esses "longos e regulares encontros com seu diretor espiritual, von Balthasar" 21.

Para publicar os escritos místicos de Adrienne, von Balthasar funda as Edições Johannes; depois, com Adrienne, funda o Instituto Secular Johannes, e ainda para Adrienne, como seus superiores não vissem evidência no misticismo de Adrienne von Speyr, na véspera de sua profissão solene, von Balthasar deixa a Companhia de Jesus, escolhendo a "obediência imediata" a Deus.

A partir de então, von Balthasar trabalhará na sombra de Adrienne, morando na casa de seu marido, ocupando-se de literatura, de teologia estética (e estetizante), de seus ditados "místicos", até que, em 1960, a mobilização neomodernista para o Concílio o engaja na febril preparação do Vaticano II:

"Rádio, televisão, quanta agitação e pedidos sem fim para escrever."22

Em Deus a Contradição é Impossível

"Não é aqui o lugar", lemos na página 51, "de submeter os carismas de Adrienne a um exame teológico-crítico." Ao contrário, teria sido justamente o lugar e o caso, visto que o próprio von Balthasar afirma: "sua obra e a minha não são separáveis nem psicológica nem filologicamente. São as duas metades de um todo que tem por centro uma fundação única"23 E ele começa Il nostro compito (Nossa tarefa) escrevendo:

"Este livro tem como objetivo, sobretudo, impedir que depois de minha morte procurem separar minha obra da de Adrienne von Speyr."24

Teria bastado a von Balthasar aplicar os critérios que a Igreja aplica em tais casos para repudiar como falso o misticismo de Adrienne. Deixaremos de lado a estranheza de "carismas" como os "estigmas" que ela teria recebido quando ainda era protestante, "a possibilidade dada a seu confessor [von Balthasar] de 'transferir Adrienne ao passado', a cada uma das suas idades, para percorrer sua biografia"25, sua virgindade recuperada, segundo ela, depois de dois casamentos etc. Basta-nos, como teria bastado a von Balthasar, aplicar o critério fundamental usado pela Igreja para julgar toda e qualquer pretensa "revelação":

"É preciso considerar como absolutamente falsas as revelações que se opõem ao dogma ou à moral. Em Deus a contradição é impossível."26

Á luz desse critério fundamental examinemos, entre muitos outros, dois pontos que estão na origem de dois gravíssimos desvios conciliares e pós-conciliares:

1) "A teologia da sexualidade" de Adrienne von Speyr;

2) Sua concepção da Igreja, a "Católica".

Mas para Adrienne e von Balthasar, Deus Pode Contradizer-se

Segundo von Speyr, ou segundo von Balthasar (concordamos com Balthasar que é impossível separá-los), Adrienne teria recebido do Céu a missão de "repensar" o "valor positivo da corporeidade [ou ainda da sexualidade] no interior da religião da encarnação" 27.

Acontece que este "valor positivo" é tão positivo que chegar a anular as... conseqüências do pecado original e a advertência do Espírito Santo: "quem ama o perigo nele perecerá". Escreve Adrienne no seu diário: "As receitas de se manterem afastados um do outro, de não se verem, no que concerne à esfera do corporal, hoje estão esgotadas."28 O que é claramente contra o dogma do pecado original e contra o ensinamento tradicional da Igreja no domínio moral. Fiel à sua "revolução sexual", Adrienne concebe e exprime sua relação "espiritual" com von Balthasar pelas categorias mais cruas da sexualidade. Assim, a gênese do instituto secular Johannes é descrita como um gravidez, em que o instituto é a criança, Adrienne a mãe e Balthasar o pai29. Eis, em seguida, como "Inácio" (leia-se Santo Inácio) explica a Adrienne que ela recebeu os estigmas (mesmo sendo protestante) para von Balthasar: "mesmo sendo virgem [Adrienne, casada, só por prodígio, apesar do 'valor positivo' da sexualidade], é um modo pelo qual a mulher podia ser marcada pelo homem"30.

E, para que não tenhamos mais dúvidas sobre a linguagem atribuída pela "mística" a "Inácio", leremos o que segue:

"A fecundidade espiritual do homem será depositada na carne da mulher, para que ela possa levar o fruto. Assim, a fecundidade de Hans Urs von Balthasar foi posta nos estigmas que Adrienne tinha recebido para ele." 31

E isto pode bastar para que se pergunte, com razão, se não estamos diante de um caso de sensualismo pseudomístico.

Entretanto, aqui é importante indicar, na "inteligência do valor positivo da corporeidade", por parte de Adrienne, uma das causas, se não a causa determinante, da exaltação atual da sexualidade, infelizmente em voga, até nos meios religiosos, camuflada pelo slogan "integração afetiva".

E von Balthasar? Ele também não admitia "que se pudesse diminuir o significado dos corpos masculino e feminino (e portanto do ser humano masculino e feminino) [de onde o 'Caros irmãos e irmãs' e as palestras sobre a masculinidade e a feminilidade de João Paulo II!], justamente onde se fala de uma real encarnação do Filho de Deus"32. E, na sua concepção estetizante da teologia, ele deplorava:

"E onde foi parar o Eros no Cântico dos Cânticos [até como poema erótico, naturalmente], que faz parte do centro da teologia?"33

Há pior, porém. Von Balthasar sabe muito bem que a "teologia mística" da visionária não se enquadra na doutrina católica. "Na obra teológica global de Adrienne", escreve ele, "existem passagens particulares que, fora de seu contexto, poderiam parecer às vezes estranhas [também dentro do contexto]"34.

Em seguida, no prefácio, admite claramente que as obras de Adrienne "de início são de espantar e talvez desorientadoras [sic] para alguns leitores"35. Para von Balthasar, contudo, isto não levantava dúvidas sobre o carisma de Adrienne, mas sim sobre a... doutrina católica! "As coisas", escreve ele, "são sempre tais que a teologia atual não é ou não é ainda [sic] capaz de compreender o que é indicado" [nas visões ou nos "ditados" de Adrienne]36. O que só pode ser dito admitindo-se que a doutrina católica possa evoluir em contradição com ela mesma, visto que a "teologia mística" de Adrienne não somente é obscura mas também está em oposição à teologia católica.

Infelizmente, von Balthasar não somente não aplicava (talvez porque não os possuísse) os critérios teológicos, para ver claramente, ao "misticismo" de Adrienne von Speyr, mas dividia com Blondel e De Lubac a nova noção vitalista e evolucionista da verdade, pela qual, em Deus, e portanto no desenvolvimento da doutrina católica, "a contradição é possível". Isto aparecerá de modo ainda mais evidente no segundo ponto que nos propomos examinar e que permitirá compreender a borrasca de loucura ecumênica que levou alguns responsáveis da Igreja Católica a ceder sem nenhum freio.

A "Católica" Não-Católica

Adrienne afirma que uma missão eclesial foi confiada pelo Céu a von Balthasar e a ela própria. Urs von Balthasar fala disso em Il nostro compito37. Adrienne, numa visão "marial", diz a Deus:

"Nós [Adrienne e von Balthasar] queremos amar-te, servirt-te e agradecer-te a 'Igreja que nos confias' [...]. Estas últimas palavras foram pronunciadas de modo improvisado e ditadas pela Mãe de Deus, isto é, nós [a Mãe de Deus e Adrienne] o dissemos as duas juntas, e o filho (o nosso [de Adrienne e de von Balthasar], você sabe), ela colocou-o uma fração de segundos nos braços, mas não era somente a criança, era a Una Sancta em miniatura, e assim me parece que é uma justa unidade de tudo o que nos foi confiado e que é trabalho em Deus para a Católica."

O que é então esta outra "criança" de Adrienne e de von Balthasar, essa "Igreja" dita "Católica", que Deus lhes teria confiado?

Na introdução de Mystique objectiva de Adrienne von Speyr, de Bárbara Albrecht38, lemos acerca da "mística" Adrienne esta afirmação espantosa: "Ainda que [Adrienne] se tenha afastado claramente e de modo decisivo da forma protestante do cristianismo, por uma necessidade interior, falta a seu conceito de 'católica' certa delimitação confessional." Então, se o afastamento de Adrienne do protestantismo foi claro e decisivo, sua conversão ao catolicismo não foi nada clara e decisiva. A menos que se dê ao termo "católica" um significado completamente diferente do habitual.

Note-se, de passagem, que o que escreve Bárbara Albrecht corresponde exatamente ao testemunho da governanta italiana de Adrienne, a qual, como boa católica veneziana, afirma claramente:

"Eu li também... essa história de 'Mística'. Eu não gosto nada disso. Por que escrever essas bobagens? Madame não era da Igreja, ela ia à missa somente duas vezes por ano, no Natal e na Páscoa."39

O mesmo conceito de "católico", privado de "certa determinação confessional", encontramos em von Balthasar, que afirma ser também devedor de Adrienne von Speyer. Em Katholisch, uma obra que publicou em 1975, ele escreve:

"Essa pequena obra é, ao mesmo tempo, uma homenagem a meus mestres E. Pryzwara e H. de Lubac e igualmente a Adrienne von Speyr, pois todos, em face de uma teologia escolástica, me mostraram a dimensão da realidade católica, vasta como o mundo."

E nessa "catolicidade que não omite nada"40, tudo encontra lugar e justificação: a verdadeira e as falsas religiões, a Igreja Católica e as seitas heréticas e/ou cismáticas, o sagrado e o profano, a religião e o ateísmo; abreviando: o erro e a verdade, o bem e o mal. Exatamente como na dialética hegeliana.

O Iceberg

Aprofundemos a conversa. Urs von Balthasar ? admite a revista Communio ? é exaltado como "teólogo da beleza" e "ao mesmo tempo é criticado por seu estilo hermético e complicado"41. Além disso, escreve ainda Communio, o que se conhece e o que se diz dele "representa ?mal haja quem nisto põe malícia ? somente a ponta do iceberg". Lancemos pois um olhar para a parte submersa do iceberg, isto é, para o que se esconde sob o estilo hermético e complicado, para ver se há ou não razão para pensar mal dele.

Aparentemente, os escritos de von Balthasar são obscuros e herméticos e seu comportamento é incompreensível. Por exemplo, ele trabalha para demolir a teologia católica e a Roma católica, mas critica asperamente Karl Rahner e o "complexo anti-romano"; quer o ecumenismo mais vasto possível, que abrace até as religiões pagãs e idólatras, mas critica a "tendência à liquidação" dos católicos pós-conciliares. Entretanto, basta possuir a boa chave interpretativa de sua teologia para que tudo se torne claro. Esta chave interpretativa é o idealismo em geral e a lógica hegeliana em particular, que, sabe-se, é diametralmente oposta não só à lógica aristotélica e tomista mas também ao bom senso comum. Enquanto a lógica aristotélica, de fato, tem por fundamento o princípio de identidade e de não-contradição, segundo o qual os opositores se excluem, a lógica hegeliana é fundada no princípio exatamente contrário: os opostiores não se excluem, mas são a alma da realidade, sendo momentos necessários, apesar de abstratos; realidade que é uma síntese de opositores na qual os ditos opostos (afirmação e negação, teses e antíteses) encontrarão sua realização e sua verdadeira realidade.

Urs von Balthasar aplicou à eclesiologia essa lógica obscura e hermética, porque ele ignora "o medo da contradição", medo que é natural a qualquer homem de bom senso, mas que foge das preocupações do... ecumenismo atual: tantas "Igrejas", tantas "religiões", o ateísmo, com suas contradições, não espantam von Balthasar e, segundo seu julgamento, não devem espantar ninguém, porque são somente os momentos (teses e antíteses, afirmações e negações) desse processo que conduzirá inevitavelmente, por necessidade intrínseca, à síntese, que é a "Católica" (a catolicidade que não omite nada, a universalidade sem exclusão alguma), na qual se realizará (finalmente, depois de dois mil anos) a verdadeira Igreja de Cristo.

Uma vez possuindo esta "chave", a teologia de von Balthasar de hermética se torna transparente e todo o mundo pode ver a enormidade doiceberg que navega sob a água contra a santa Igreja de Deus.

Do "Delírio Filosófico" ao Delírio Ecumênico

Do "delírio filosófico" de Hegel (assim o define Schopenhauer) só poderia nascer o atual delírio ecumênico.

Com esta chave interpretativa, de fato, é possível compreender todos os enigmas de von Balthasar e do ecumenismo atual, de que ele é mestre e autor. Compreende-se, de fato, porque no diálogo ecumênico "uma única coisa fica: fiar-se nas configurações eclesiais e teológicas e na rivalidade entre elas"42. Só o jogo necessário dos opositores é que conduzirá à síntese: "Se esta indicação é levada a sério [fiar-se nas rivalidades]", escreve von Balthasar, "então ela exige muito daqueles que lutam cristãmente pela catolicidade, sobretudo o não fixar-se em nenhum sistema [católico ou não] que, a priori, se suponha onicompreensível e ofereça a mais ampla perspectiva, e não desprezar os pontos de vista opostos."43 Essa onicompreensividade, de fato, será dada somente à "Católica", que é a síntese, e não aos sistemas atuais (incluindo o "sistema" católico"), que são as teses e antíteses destinadas a ser ultrapassadas, aniquilando-se mutuamente, na síntese.

Aos "sistemas" atuais pede-se somente duas coisas: por um lado, que favoreçam a síntese, o "relaxamento e o degelo" de seu próprio bloqueio em torno de um ponto de vista que exclui os pontos de vista opostos; por outro lado, a "competição", o deixar agir a "rivalidade" com os outros sistemas, incluindo as "formas de cristianismo anônimo"44. A síntese, de fato, brota justamente do jogo dos contrários. Tudo isso é incompreensível pela lógica aristotélico-tomista, que é a lógica do bom senso, mas não pela lógica hegeliana.

Compreende-se, então, por que o atual ecumenismo (ver Assis45) põe no mesmo plano e até mantém separadas as diversas "religiões" ("não queremos sincretismo", e é verdade) e, ainda quando promove o insensato diálogo, quer que os budistas sejam bons budistas, os católicos bons católicos (segundo a "nova teologia", é claro), os protestantes bons protestantes e assim por diante: a "competição", o jogo das "rivalidades", de contradições e oposições é essencial ao processo que conduzirá à super-Igreja ecumênica, a "Católica", síntese de todas as religiões, na qual enfim as contradições e oposições serão ultrapassadas.

Compreende-se também por que von Balthasar teve, como De Lubac, sua "crise" pessoal pós-conciliar, que, entretanto, também para ele não foi uma conversão46. Não entrava em sua lógica hegeliana que os católicos abandonassem assim sua identidade: a "Católica" é, também ela, "comunhão entre aquilo que aparentemente se exclui"47. Assim, os contrastes são essenciais à realização da dita "comunhão", exatamente como, na lógica de Hegel, a tese e a antítese são essenciais à realização da síntese, pois, se a tese se retira da "competição" e se torna também antítese, nunca haverá "síntese"48.

Eis por que a Igreja Católica não deve "pôr entre parênteses" mas deve "integrar" (é a palavra-chave para von Balthasar) no "todo católico" (= a "Católica") tudo o que é visto atualmente como "excesso católico"49. No seu livro, enganador e mal-compreendido, Le Complexe antiromain, que tem o incrível e significativo (e freqüentemente omitido) subtítulo Como Integrar o Papado na Igreja Universal (= "Católica"?), von Balthasar sugere justamente a maneira de integrar "esse elemento, que parece atrapalhar, ao todo católico", que claramente não é a Igreja Católica. Eis a maneira sugerida: a Igreja deve ser não somente de Pedro mas também de Paulo, de Maria e de João50. E assim o primado de jurisdição, definido pelo Vaticano I, se apaga atrás de um vago primado da caridade inventado por von Balthasar (e por seus "irmãos separados"), para o qual João Paulo II, como São Paulo, percorre o mundo há anos, explicando aos jornalistas que ele recebera não somente o carisma de Pedro mas também o de Paulo!

A Apostasia

Basta conhecer o Catecismo da Igreja Católica (o antigo, não o novo) para compreender que o ecumenismo de Balthasar é uma verdadeira proposta de apostasia.

Christophe Schönborn, secretário de redação (aviso ao leitor!) do novo "Catecismo", por ocasião do primeiro aniversário da morte de von Balthasar ilustrou o ecumenismo na Igreja de Santa Maria em Basiléia51.

O que é, então, o ecumenismo para von Balthasar? É a "integração no todo da Católica"52, a qual "Católica" não existe ainda e no momento é "somente uma promessa, uma esperança escatológica". Eis como Schönborn explica "a importância ecumênica" da "figura" de Maria em von Balthasar: "em Maria a Igreja aparece como a Igreja santa e imaculada, em quem a plena figura da Igreja, sua 'catolicidade', é não somentepromessa, esperança escatológica, mas antes plenitude já realizada". Então, contrariamente à Fé constante e infalível da Igreja, repetida por Pio XI em Mortalium Animos, e contrariamente ao dogma que todo e qualquer católico tem o dever de professar (Credo Ecclesiam unam, sanctam, catholicam), a catolicidade da Igreja não é uma realidade, realizada há dois mil anos, mas uma realidade que ainda está por se realizar, uma simples "promessa, uma esperança escatológica". E o que é, então, a atual Igreja Católica para von Balthasar? Um "sistema" entre outros, uma das numerosas "configurações eclesiais", teses ou antíteses (consoante ela recusa ou é recusada), que será ultrapassada e aniquilada na "Católica", como as seitas, as religiões pagãs e idólatras e os diversos "marxismos".

No catolicismo, não menos que no protestantismo, para von Balthasar, a "negação do outro, a recusa da comunhão", teria produzido uma unidade que, no fundo, consistia somente na reunião em torno de um ponto de vista rígido". 53

A Igreja Católica é a "realização romana da Catolicidade"54; tanto a Igreja Católica como as seitas heréticas e/ou cismáticas, o próprio judaísmo e as "formas anônimas do Cristianismo" são "o todo em fragmentos", onde o todo é a "Católica" e a Igreja Católica é um dos numerosos fragmentos que, inevitavelmente, retornam ao todo. "Cada fragmento", escreve von Balthasar, "faz logo pensar no vasto sagrado de que ele provém, cada pedaço brilha pelo espírito, a partir da obra inteira completa"55, e a Igreja Católica é um "fragmento", um pedaço entre os outros.

Vê-se claramente, então, por que já não se ensina que a Igreja de Cristo "é" a Igreja Católica, mas continua-se a ensinar, com o Vaticano II (ver o novo "Catecismo"), que a Igreja de Cristo "subsist in", subsiste na Igreja Católica, exatamente como o "todo no fragmento"! Eis por que, no diálogo ecumênico, em matéria de fé, o católico concorda em aprender tanto quanto os outros:

"Para os católicos é imperativo afastar a voz daqueles que nos sugerem e nos levam de volta a algum pedaço que falta [sic] ou medianamente valorizado da integridade da fé."56

É por isso que hoje, como escreve Romano Amerio, "se professa abertamente que a união não se deve fazer por conversões individuais, mas pelo acordo das grandes coletividades [as diversas teses e antíteses] que são as Igrejas", e que essa união deve fazer-se não por um retorno dos separados da Igreja Católica, mas "por um movimento de todas as confissões para um centro que está fora de cada uma delas [a síntese evolutiva]"57

E aqui a proposta de apostasia, isto é, de abandono de toda e qualquer doutrina de fé, se torna flagrante. Onde achar a Revelação Divina na sua integridade e na sua pureza senão na Igreja Católica? Propor aos católicos, de maneira mais ou menos dúbia, o êxodo da Igreja Católica é propor a apostasia:

"A fé em Jesus Cristo não ficará pura e incontaminada se não for sustentada e defendida pela fé na Igreja, coluna e fundamento da verdade (1 Tm 3, 15)."58

O Desprezo do Magistério

Em conclusão, é importante assinalar que von Balthasar, como também Blondel e De Lubac, cultivou "sua" teologia com evidente desprezo pelo Magistério da Igreja e especialmente por São Pio X, que, na encíclica Pascendi (1907), condenou o ecumenismo, em que desemboca inevitavelmente o naturalismo dos modernistas; e por Pio XII, que em Humani Generis condena tanto as tentativas de conciliar o idealismo, e portanto Hegel, com a teologia católica como o ecumenismo, em que todos se teriam, "sim, unidos, mas em ruína geral". Em 1946, escrevia o Pe. Garrigou-Lagrange: "Para onde vai a nova teologia com os novos mestres em que se inspira? Para onde senão o caminho do ceticismo, da fantasia e da heresia?" E os novos "mestres" eram Hegel e Blondel, que Fessard (da "turma" de De Lubac) chamava, não sem razão, "nosso Hegel"59. Hoje, no domínio ecumênico, mais do que na fantasia, estamos no delírio. Num dos documentos "ecumênicos" dos mais escandalosos: "Indicações Úteis para Apresentar Corretamente o Judaísmo", da Comissão para Relações com o Judaísmo, presidida pelo cardeal Willebrands60, pode-se ler que os católicos e os judeus, "ainda que partindo de pontos de vista diferentes [ler:opostos], tendem para fins análogos [sic], a vinda ou o retorno [é a mesma coisa!] do Messias". É textualmente o pensamento de von Balthasar, que, como Hegel, encontra o modo de conciliar todos os opostos, fazendo violência à realidade dos fatos:

"Pedro, o renegado, abandona o julgamento do Senhor e se solidariza [sic] com os judeus [que crucificaram Cristo] [...]; juntamente com vós, judeus, também nós, cristãos, esperamos a (re)vinda [sic] do Messias."61

Contudo, von Balthasar e seus companheiros da "nova teologia" nunca teriam conseguido impor na Igreja suas nebulosas elucubrações, que não têm a seu favor nem a força da verdade da razão nem a força da verdade revelada, se João Batista Montini não tivesse subido ao trono de Pedro, mas... daquele mal teólogo filomodernista, posto ao serviço da "nova teologia", sua alta autoridade e seu sucessor foram os propagadores eufóricos. Voltaremos a falar nisso.

Sim Sim Não Não, no. 14, fevereiro de 1994

1.Ed. Piemme.

2.Figura e opera, pp. 29 ss.

3.Ibid., p. 35, citado da introdução de Erde und Himmel (Terra e Céu).

4.Ibid., 33-34.

5.P. 35.

6.Urs von Balthasar, Priifet Alles, p. 9.

7.Ibid.

8.Ver Figura e opera, p. 36.

9.Ver São Pio X, Pascendi.

10.Ibid., pp. 47-48.

11.São Pio X, Pascendi.

12.Il nostro compito (Nossa tarefa), Jaca Book, p. 29.

13.Ibid., p. 37.

14.Ibid., p. 39 ss.

15.Unser Auftrag, p. 85.

16.Figura e opera, cit., p. 43.

17.Henrici S.J., op. cit., p. 44.

18.Ibid., p. 45.

19.Ibid., p. 44.

20.Op. cit., p. 147.

21.Idem.

22.Ibid., p. 59.

23.P. 60, citado de Rechenschaft ou, em italiano, Il filo di Arianna attraverso la mia opera.

24.P. 13.

25.Il nostro compito, p. 13, nota 1.

26.Antonio Royo Marin O.P., Teologia della perfezione cristiana, p. 1077.

27.Il nostro compito, p. 25.

28.P. 1.703; ver Il nostro compito, p. 91.

29.Communio, mai-jun de 1989, pg. 91.

30.Ibid., pp. 91 ss, citando o parágrafo 1.645 de Erde und Himmel, obra póstuma de Adrienne.

31.Erde und Himmel, II § 680.

32.A. Siccari O.C.D., Communio, nov-dez. de 1991, p. 89.

33.Figura e opera, cit., pp. 58 ss.

34.Il nostro compito, p. 14.

35.Ibid., p. 9.

36.Ibid., p. 16.

37.P. 61; Unser Auftrag, p. 78; ver Communio, mai.-jun. de 1989, p. 102, que dá, entre parênteses, as explicações necessárias.

38.Jaca Book, p. 72.

39.Il Popolo de Pordenone, 16 de agosto de 1992.

40.Ibid., p. 32.

41.Mai.-jun. de 1989, p. 83.

42.Figura e opera, cit., p. 417.

43.Ibid., citado por Anspruch auf Katholizität, p. 66.

44.Ibid., pp. 69-70.

45.Na cidade italiana de Assis, em 1986, deu-se uma reunião de representantes de todas as religiões, convocada por João Paulo II, e que, dando origem ao chamado “espírito de Assis”, se vem repetindo desde então todos os anos, em diferentes cidades. Já provocou diversos escândalos, como uma imagem de Buda posta sobre um sacrário.

46.Ver Figura e opera, pp. 417-418.

47.Communio, jul-ago de 1992, art. H. Urs von Balthasar, Communion: un programme.

48.Ver Figura e opera, p. 417.

49.Ibid., p. 446.

50.Ibid., p. 447.

51.Ver Figura e opera, pp. 31 ss: “A Contribuição de Hans Urs Balthasar ao Ecumenismo”.

52.Ibid., p. 448.

53.Ver Figura e opera, p. 407.

54.Ibid., p. 405.

55.Citado em Figura e opera, p. 409.

56.H. U. von Balthasar, Kleine Fibel, p. 92, citado em Figura e opera, p. 444.

57.R. Amerio, Iota Unum, Nouvelles Editions Latines, p. 461.

58.Pio XI, Mit Brennender Sorge.

59.Ver A. Russo, H. de Lubac: Théologie et dogme dans l´Histoire. L´Influence de Blondel.

60.Ver Sì Sì No No, ed. francesa, no. 64, outubro de 1985.

61.H. U. von Balthasar, Communio, jul.-ago. de 1992, p. 57.

23 de dezembro de 2011

O fim do Sacerdócio



O fim do Sacerdócio

I

O Sacerdócio, aos olhos dos santos, é um encargo terrível

Dizia S. Clemente de Alexandria que os que estavam verdadeiramente animados do Espírito de Deus, se encontravam possuídos de temor ao receberem o sacerdócio, como um homem que treme à vista dum fardo enorme, que lhe vão lançar sobre os ombros, com perigo de ele ficar esmagado72. Santo Efrém nos diz que não encontrava ninguém que quisesse ser ordenado de presbítero (Ep. ad Joan. hieros.). Um concílio de Cartago decretou que os que fossem julgados dignos do sacerdócio e o recusassem, podiam ser obrigados a deixar-se ordenar. “Ninguém, dizia S. Gregório de Nazianzo, recebe de boa vontade o sacerdócio”73. Refere o diácono Pôncio que S. Cipriano, ao saber que o queriam ordenar sacerdote, correra a esconder-se por humildade: Humiliter secessit (Vita S. Cypr.). O mesmo fez, por igual motivo, S. Fulgêncio. Prevendo que ia ser eleito, correu a esconder-se num lugar desconhecido74. Refere Sozomeno que também Sto. Atanásio fugira para não ser elevado ao sacerdócio. Santo Ambrósio fez grandes resistências, como ele próprio afirma75. S. Gregório procurou disfarçar-se em trajo de negociante para escapar à ordenação, apesar de Deus ter mostrado por milagres que o chamava à ordenação.

Para não ser ordenado, Sto. Efrém se apresentou como insensato e S. Marco cortou o dedo polegar. O mesmo motivo levou Sto. Amon a cortar as orelhas e o nariz; e, como apesar disso o povo insistia em o fazer ordenar, fez-lhe a ameaça de cortar também a língua; então cessaram de o perseguir.

É sabido que S. Francisco, ordenado diácono, não quis receber o presbiterato, porque uma visão lhe tinha revelado que a alma do padre deve ser pura como a água, que lhe fôra mostrada num vaso de cristal. Do mesmo modo o abade Teodoro não era senão diácono, e todavia nunca quis exercer as funções da sua Ordem, porque um dia ao fazer a oração viu uma coluna de fogo e foi-lhe dito: “Se tens o coração inflamado como esta chama, então exerce a tua Ordem”. O abade Motuès era sacerdote, mas não quis celebrar, porque se julgava indigno disso.

Antigamente, entre os monges, cuja vida era tão austera, poucos se encontravam que fossem sacerdotes. Aos olhos deles, aspirar ao sacerdócio era presunção. Por isso S. Basílio, querendo experimentar a obediência dum monge, mandou-lhe que pedisse publicamente o presbiterato; o que foi olhado como um ato de obediência; porque, fazendo um tal pedido, o religioso expunha-se a passar por um grande orgulhoso.

Mas, enquanto os santos, que só vivem para Deus, têm tanta repugnância em receber as Ordens e se crêem indignos delas, — como é que tantos correm às cegas para o sacerdócio e não descansam até que lá cheguem, por caminhos direitos ou tortos? Ai, exclama S. Bernardo, esses são para lamentar; porque, para eles, o estarem no número dos sacerdotes será o mesmo que estarem inscritos na lista dos condenados!

Porquê? Porque de todos esses padres apenas haverá algum que tenha sido chamado por Deus. O que os impediu para o santuário foi o interesse, a ambição, a influência dos pais, e assim não se ordenam para o fim que o sacerdote deve ter em vista, mas para os fins perversos do mundo. Por isso os povos permanecem ao abandono e a Igreja desonrada. Tantas almas se perdem, ao mesmo tempo que tais padres se afundam na ignomínia!

II

O fim do sacerdócio

Quer Deus que todos os homens cheguem a salvar-se, mas nem todos pelos mesmos caminhos: assim como no Céu há diversos graus de glória, também na terra há diversos estados, que assinalam outros tantos caminhos diferentes para ir para o Céu. Entre esses estados, o mais nobre, o mais sublime, que se pode chamar o estado por excelência, é o estado sacerdotal, em razão dos fins altíssimos para que foi estabelecido.

Quais esses fins? Só celebrar missa, recitar o ofício, e viver depois como os seculares? Não, por certo; o fim que Deus se propôs foi estabelecer na terra pessoas públicas, encarregadas de tudo quanto respeita à honra da sua divina majestade e à salvação das almas76: Porque todo o Pontífice, escolhido dentre os homens, é estabelecido o favor dos homens, para exercer as funções do culto para com Deus, e oferecer dons e sacrifícios pelos pecados; deve saber compadecer-se dos que pecam por ignorância77. Assim fala S. Paulo, e o Sábio diz de Aarão que ele fôra escolhido, para desempenhar funções sacerdotais e louvor ao nome de Deus78. Foi assim que o cardeal Hugues aplicou as palavras: Habere laudem. E Cornélio A-Lápide ajunta: Assim como o ofício dos anjos é louvar incessantemente a Deus no Céu, assim o dos sacerdotes é louvá-lo constantemente na terra79.

Estabeleceu Jesus Cristo os padres como cooperadores seus para glória de seu eterno Pai e salvação das almas; por isso ao subir ao Céu declarou que os deixava em seu lugar, para continuarem a obra da redenção, que tinha empreendido e consumado. Conforme a expressão de Sto. Ambrósio80, assim que os constituiu delegados do seu amor. O Salvador disse a seus discípulos: Conforme meu Pai me enviou, assim Eu vos envio a vós81; deixovos, para que façais o que eu próprio vim fazer à terra, isto é, para que manifesteis aos homens o nome de meu Pai.

Dirigindo-se a seu Padre eterno, tinha Ele dito: Glorifiquei-vos na terra; a minha obra está consumada... fiz conhecer o vosso nome aos homens82. Depois tinha orado pelos seus sacerdotes nestes termos: Confiei-lhes a vossa palavra... Santificai-os na verdade!... Assim como vós me enviastes ao mundo, assim Eu os enviei83. Portanto os padres estão colocados neste mundo para fazerem conhecer a Deus: as suas perfeições, a sua justiça, a sua
misericórdia, os seus preceitos, e para lhe conciliarem o respeito, obediência e amor que lhe são devidos. Estão encarregados de procurar as ovelhas desgarradas, e dar a vida por elas, se necessário for. Tal o fim para que Jesus Cristo veio à terra, e instituiu os sacerdotes84.

III

Principais deveres do padre

O próprio Jesus Cristo diz que viera ao mundo para acender o fogo do amor divino85. Eis ao que o padre deve consagrar toda a sua vida e todas as suas forças. Não tem que trabalhar em adquirir tesouros, honras e bens terrenos, mas unicamente em ver a Deus amado de todos os homens. Somos chamadas por Jesus Cristo, diz o autor da Obra imperfeita, não a procurar os nossos próprios interesses, mas a glória de Deus... O amor verdadeiro não se procura a si próprio; deseja em tudo andar à vontade do amado86. Na antiga Lei disse o Senhor: Separei vos de todos os povos, para que fôsseis meus87. Considerai estas palavras como dirigidas aos padres: Para que sejais meus, inteiramente aplicados aos meus louvores, ao meu serviço e ao meu amor; e, segundo S. Pedro Damião, para que sejais os cooperadores e dispensadores dos meus sacramentos88; e segundo Sto Ambrósio: Para serdes os guias e pastores do rebanho de Jesus Cristo89. Acrescenta o santo Doutor que o ministro dos altares não é mais seu mas de Deus90. O próprio Senhor diz que separa dos outros homens os padres, para os ter inteiramente unidos a si91.

O divino Mestre disse: Se alguém me está associado, que me siga; = Si quis mihi ministrat, me sequatur (Jo. 12, 26). Para seguir a Jesus Cristo, deve o padre fugir do mundo, socorrer as almas, fazer amar a Deus, declarar guerra ao pecado. Deve olhar como feitas a si as injúrias contra Deus: Caíram sobre mim os ultrajes dos que vos ofendem92. Entregues aos negócios do mundo, não podem os leigos render a Deus o tributo de homenagem e reconhecimento
que lhe é devido; por isso, diz um sábio autor, o Pe. Frassen, é necessário escolher dentre os outros homens alguns que, pelo seu próprio estado, sejam obrigados a prestar ao Senhor a honra que lhe pertence93.

Em todas as cortes dos soberanos, há ministros encarregados de fazer observar as leis, remover os escândalos, reprimir os sediciosos e defender a honra do rei. Foi para os mesmos fins que o Senhor estabeleceu os sacerdotes: são oficiais da sua corte. Isto fez dizer a S. Paulo: Mostremo-nos verdadeiros ministros de Deus94. Estão os ministros sempre atentos a conciliar ao seu soberano o respeito que lhe é devido, e engrandecer a sua glória. Falam dele com veneração; se alguém o censura, logo o defendem com zelo; procuram adivinhar-lhe os desejos, e até expõem a vida para lhe agradar.

É assim que procedem os padres para com Deus? Não há dúvida que são ministros seus; é pelas suas mãos que passam e são tratados os negócios que interessam à sua glória. É por intermédio deles que devem ser tirados do mundo os pecados, — fim para que que Jesus Cristo quis morrer, diz S. Paulo95. Mas, no dia do juízo, como serão reconhecidos por verdadeiros ministros de Jesus Cristo esses padres que, longe de impedirem os pecados dos outros, eles próprios são os primeiros a conjurar-se contra Jesus Cristo?

Que se diria dum ministro que se recusasse a vigiar pelos interesses do seu rei, e se afastasse quando ele reclamasse o seu serviço? É que se diria se este ministro falasse até contra o rei, e conspirasse para o destronar, coligando-se com os seus inimigos?

Segundo o Apóstolo, são os sacerdotes embaixadores de Deus96; são os cooperadores de Deus na salvação das almas97. Deu-lhes Jesus Cristo o Espírito Santo, para que possam salvar as almas, absolvendo-as dos pecados98. Donde conclui o teólogo Habert que o espírito sacerdotal consiste essencialmente num zelo ardente, primeiro pela glória de Deus, e depois pela
salvação das almas99.

Não tem pois o padre que se ocupar das coisas do mundo, mas unicamente dos interesses de Deus: = Constituitur in iis quae sunt ad Deum (Hebr. 5, 1). Por esta razão, quis S. Silvestre que, para os eclesiásticos, os dias da semana tivessem o nome de Férias, que quer dizer dias feriados, em que não se cuida dos trabalhos ordinários100. Assim nos adverte que nós os padres nos devemos empregar exclusivamente em servir a Deus e ganhar-lhe almas, ocupação que S. Dionísio Areopagita chama o mais divino dos ministérios: “Será perfeito o sacerdote se imitar a Deus, se se fizer cooperador de Deus, que é a mais divina de todas as ocupações”101.

Segundo Sto. Antonino102, sacerdos significa sacra docens; e segundo Honório d’Autun103, presbyter significa praebens iter. Assim, Sto. Ambrósio dá aos padres o título de guias e pastores do rebanho de Jesus Cristo104. Por S. Pedro é chamado o clero um sacerdócio real, uma nação santa, um povo de conquista105, povo destinado a conquistar, — o quê? Almas e não riquezas, conforme a reflexão de Sto. Ambrósio. Os próprios pagãos não queriam que os seus sacerdotes se ocupassem senão do culto dos seus deuses; por isso lhes era vedado o exercício de qualquer magistratura106.

Este pensamento fazia gemer S. Gregório, que dizia, falando dos padres: “Devemos pôr de parte todos os negócios da terra, para só nos darmos à causa de Deus; mas procedemos ao contrário: deixamos a causa de Deus e só vivemos para os interesses terrenos”107. Moisés, estabelecido por Deus para só cuidar das coisas da sua glória, aplicava-se a decidir pleitos, mas Jetro advertiu-o e disse-lhe: Estás a gastar-te loucamente; deixa esse trabalho para cuidares do povo e das coisas relativas a Deus108.

Que diria Jetro se visse os nossos padres feitos negociantes, servos dos seculares, medianeiros de casamentos, e sem se importarem das obras de Deus? Se os tivesse visto, como observa S. Próspero, empenhados em se fazerem ricos, mas não melhores; em adquirirem mais honras, mas não mais santidade?109

Ó, exclamava a este respeito o venerável João de Ávila, que abuso subordinar o Céu à terra! Que miséria, ajunta S. Gregório, ver tantos padres que procuram adquirir, não os merecimentos duma vida virtuosa, mas as vantagens da vida presente!110 É porque, nas funções do seu ministério, não intentam a glória de Deus, mas somente o lucro que auferem delas, diz Sto. Isodoro de Pelusa111.

A Dupla Concepção de Vida



CAPÍTULO II
A DUPLA CONCEPÇÃO DE VIDA

A civilização cristã procede de uma concepção de vida diversa daquela que dera origem à civilização pagã.

O paganismo, empurrando o gênero humano pelo declive em que o pecado original o colocara, dizia ao homem que ele estava sobre a terra para fruir a vida e os bens que este mundo lhe oferece. O pagão não ambicionava, não buscava nada além disso; e a sociedade pagã estava constituída para oferecer esses bens tão abundantes e esses prazeres tão refinados, ou também tão grosseiros quanto possam ser, para os que estavam em situação de pretendê-los. A civilização antiga nasceu desse princípio, todas as suas instituições dele decorriam, sobretudo as duas principais, a escravidão e a guerra. Pois a natureza não é suficientemente generosa, e sobretudo então não tinha sido cultivada pelo tempo necessário e bastante bem para oferecer a todos os prazeres cobiçados. Os povos fortes subjugavam os povos fracos, e os cidadãos escravizavam os estrangeiros e mesmo seus irmãos, para obter produtores de riquezas e instrumentos de prazer.

O cristianismo chegou e fez o homem compreender que devia procurar numa outra direção a felicidade cuja necessidade não cessa de atormentá-lo. Ele destruiu a noção que o pagão criara da vida presente. O divino Salvador ensinou-nos por Sua palavra, persuadiu-nos por Sua morte e ressurreição, que se a vida presente é uma vida, ela não é A VIDA que Seu Pai nos destinou.

A vida presente não é senão a preparação para a vida eterna. Aquela é o caminho que conduz a esta. Nós estamos in via, diziam os escolásticos, caminhando ad terminum, na estrada para o céu. Os sábios de hoje exprimiriam a mesma idéia, dizendo que a terra é o laboratório no qual se formam as almas, no qual se recebem ese desenvolvem as faculdades sobrenaturais que o cristão, após a morte, gozará na morada celeste. Como a vida embrionária no seio materno. É também uma vida, mas uma vida em formação, na qual se elaboram os sentidos que deverão funcionar na estada terrestre: os olhos que contemplarão a natureza, o ouvido que recolherá suas harmonias, a voz que a isso misturará seus cantos etc.

No céu nós veremos a Deus face a face,1 é a grande promessa que nos foi feita.
Toda a religião está baseada nela. E no entanto nenhuma natureza criada é capaz
dessa visão.

Todos os seres vivos têm sua maneira de conhecer, limitada por sua própria natureza. A planta tem um certo conhecimento das substâncias que devem servir à sua manutenção, posto que suas raízes se estendem em direção a elas, procurandoas para ingeri-las. Esse conhecimento não é uma visão. O animal vê, mas ele não tem a inteligência das coisas que seus olhos abarcam. O homem compreende essas coisas, sua razão as penetra, abstrai as idéias que elas contêm e através delas se eleva à ciência. Mas as substâncias das coisas permanecem escondidas, porque o homem é apenas um animal racional e não uma pura inteligência. Os anjos, inteligências puras, vêem a si mesmos na sua substância, podem contemplar diretamente as substâncias da mesma natureza da deles, e com mais razão as substâncias inferiores. Mas eles não podem ver a Deus. Deus é uma substância à parte, de uma ordem infinitamente superior. O maior esforço do espírito humano conseguiu qualificá-Lo de “ato puro”, e a Revelação nos diz que Ele é uma trindade de pessoas na unidade da substância, a segunda engendrada pela primeira, a terceira que procede das outras duas, e isso numa vida de inteligência e de amor que não tem começo nem fim. Ver a Deus como Ele é, amá-Lo como Ele Se ama -- e nisto consiste a beatitude prometida -- está acima das forças de toda natureza criada e mesmo possível. Para compreendê-Lo, essa natureza não deveria ser nada menos que igual a Deus.

Mas aquilo que não tem cabimento pela natureza pode sobrevir pelo dom gratuito de Deus. E isto é: nós o sabemos porque Deus no-lo disse ter feito. Isto serve para os anjos e isto serve para nós. Os anjos bons vêem a Deus face a face, e nós somos chamados a gozar da mesma felicidade.

Nós não podemos chegar a isso senão por alguma coisa de sobre-acrescentado, que nos eleva acima de nossa natureza, que nos torna capazes daquilo de que somos radicalmente impotentes por nós mesmos, como seria o dom da razão para um animal ou o dom da visão para uma planta. Essa alguma coisa é chamada aqui em baixo de graça santificante. É, diz o apóstolo São Pedro, uma participação na natureza divina. E é preciso que seja assim; pois, como acabamos de ver, em nenhum ser a operação ultrapassa, pode ultrapassar a natureza desse ser. Se um dia somos capazes de ver
a Deus, é porque alguma coisa de divino terá sido depositada em nós, ter-se-á tornado uma parte do nosso ser, e o terá elevado até torná-lo semelhante a Deus. “Bemamados, diz o apóstolo São João, agora somos filhos de Deus, e aquilo que um dia seremos ainda não se manifestou: seremos semelhantes a Ele, porque nós O veremos tal como Ele é” (I Jo., III, 2).

Essa alguma coisa nós a recebemos desde este mundo, no santo Batismo. O apóstolo São João a chama um germe (I Jo., III, 9), isto é, o início de uma vida. Era o que Nosso Senhor nos assinalava quando falava a Nicodemos sobre a necessidade de um novo nascimento, de uma geração para a nova vida: a vida que o Pai tem nEle mesmo, que Ele dá ao Filho, e que o Filho nos traz ao nos enxertar nEle pelo Santo Batismo. Essa palavra enxerto, que dá uma imagem tão viva de todo o mistério, São Paulo a tomara de Nosso Senhor, que disse a Seus apóstolos: “Eu sou a videira, vós sois os ramos. Assim como o ramo não pode dar fruto por si só, sem permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em Mim”.

Essas idéias elevadas eram familiares aos primeiros cristãos. O que o demonstra é que os apóstolos, quando levados a falar delas nas Epístolas, fazem-no como de uma coisa já conhecida. E de fato, foi assim que os ritos do batismo lhes foram apresentados em longas catequeses. Depois, as vestes brancas dos neófitos lhes dizia que eles começavam uma vida nova, que relativamente a essa vida eles estavam nos dias da infância: Filhos espirituais, era-lhes dito, como crianças recém-nascidas, desejai ardentemente o leite que deve alimentar vossa vida sobrenatural: o leite da fé sem alteração, sine dolo lac concupiscite, e o leite da caridade divina. Quando o desenvolvimento do germe que recebestes tiver chegado a seu fim, essa fé tornar-se-á clara visão, essa caridade tornar-se-á amor divino.

Toda a vida presente deve tender a esse desabrochar, à transformação do velho homem, do homem da pura natureza e mesmo da natureza decaída, em homem deificado. Eis o que acontece aqui em baixo ao cristão fiel. As virtudes sobrenaturais, infundidas em nossa alma no batismo, desenvolvem-se a cada dia pelo exercício que nós lhes damos com os socorros da graça, e tornam assim a graça capaz das atividades sobrenaturais que deverá desdobrar no céu. A entrada no céu será o nascimento, assim como o batismo foi a concepção.

Assim são as coisas. Eis o que Jesus fez e a respeito do que Ele veio informar o gênero humano. Desde então a concepção da vida presente foi radicalmente mudada. O homem não estava mais sobre a terra para gozar e morrer, mas para se preparar para a vida do alto e merecê-la.

GOZAR, MERECER, são as duas palavras que caracterizam, que separam, que opõem as duas civilizações.

Isto não quer dizer que desde o momento em que o cristianismo foi pregado os homens não pensaram em mais nenhuma outra coisa que não fosse a sua santificação. Eles continuaram a perseguir as finalidades secundárias da vida presente, e a cumprir, na família e na sociedade, as funções que elas requerem e os deveres que elas impõem. Ademais, a santificação não se opera unicamente pelos exercícios espirituais, mas pelo cumprimento de todo dever de estado, por todo ato feito com pureza de intenção. “Tudo quanto fizerdes, diz o apóstolo São Paulo, por palavras ou por obras, fazei-o em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo... Trabalhai para agradar a Deus em todas as coisas, e dareis frutos em toda boa obra” (Col., I, 10 e III, 17).

Além disso, permaneceram na sociedade, e nela permanecerão até o fim dos tempos, as duas categorias de homens que a Santa Escritura tão bem denomina: os bons e os maus. Todavia é de se reparar que o número dos maus diminui e o número dos bons aumenta à medida que a fé adquire mais influência na sociedade. Estes, porque têm a fé na vida eterna, amam a Deus, fazem o bem, observam a justiça, são os benfeitores de seus irmãos, e por tudo isso fazem reinar na sociedade a segurança e a paz. Aqueles, porque não têm fé, porque seus olhares ficaram fixados nesta terra, são egoístas, sem amor, sem piedade por seus semelhantes: inimigos de todo o bem, eles são na sociedade uma causa de discórdia e de impedimento para a civilização.

Misturados uns aos outros, os bons e os maus, os crentes e os incrédulos, formam as duas cidades descritas por Santo Agostinho: “O amor a si, que pode ir até ao desprezo de Deus, constitui a sociedade comumente chamada “o mundo”; o amor a Deus, levado até ao desprezo de si mesmo, produz a santidade e povoa “a vida celeste”.

À medida que a nova concepção da vida trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo à terra entrou nas inteligências e penetrou nos corações, a sociedade se modificou: o novo ponto de vista mudou os costumes, e, sob a pressão das idéias e dos costumes, as instituições se transformaram. A escravidão desapareceu, e ao invés de se ver os poderosos subjugarem seus irmãos, viu-se-os se dedicarem até ao heroísmo para obter-lhes o pão da vida presente, e também, e sobretudo, para obter-lhes o pão da vida espiritual, para elevar as almas e santificá-las. A guerra não mais foi feita para se apoderar dos territórios de outrem, e conduzir homens e mulheres à escravidão, mas para quebrar os obstáculos que se opunham à expansão do reino de Cristo e obter para os escravos do demônio a liberdade dos filhos de Deus.

Facilitar, favorecer a liberdade dos homens e dos povos nos seus passos em direção ao bem, tornou-se a finalidade para a qual as instituições sociais se encaminharam, senão sua finalidade expressamente determinada. E as almas aspiraram ao céu e trabalharam para merecê-lo. A busca dos bens temporais pelo gozo que deles se pode tirar não foi mais o único nem mesmo o principal objeto da atividade dos cristãos, pelo menos dos que estavam verdadeiramente imbuídos do espírito do cristianismo, mas a busca dos bens espirituais, a santificação da alma, o crescimento das virtudes, que são o ornamento e as verdadeiras delícias da vida daqui de baixo, e ao mesmo tempo garantia da bem-aventurança eterna.

As virtudes adquiridas pelos esforços pessoais se transmitiam pela educação de uma geração a outra; e assim se formou pouco a pouco a nova hierarquia social, fundada não mais sobre a força e seus abusos, mas sobre o mérito: em baixo, famílias que se detiveram na virtude do trabalho; no meio, aquelas que, sabendo juntar ao trabalho a moderação no uso dos bens que ele lhes propicia, fundaram a propriedade através da poupança; no alto, aquelas que, desembaraçando-se do egoísmo, se elevaram às sublimes virtudes da dedicação a outrem: povo, burguesia, aristocracia. A sociedade foi baseada e as famílias escalonadas sobre o mérito ascendente das virtudes, transmitidas de geração em geração.

Tal foi a obra da Idade Média. Durante seu curso, a Igreja realizou uma tripla tarefa. Ela lutou contra o mal que provinha das diversas seitas do paganismo e o destruiu; ela transformou os bons elementos que se encontravam entre os antigos romanos e as diversas espécies de bárbaros; enfim, Ela fez triunfar a idéia que Nosso Senhor Jesus Cristo dera da verdadeira civilização. Para aí chegar, Ela tinha-Se empregado primeiramente em reformar o coração do homem; daí viera a reforma da família, a família reformara o Estado e a sociedade: via inversa daquela que se quer seguir hoje.

Sem dúvida, crer que, na ordem que acabamos de explanar, não tenha havido desordem, seria se enganar. O antigo espírito, o espírito do mundo, que Nosso Senhor havia anatematizado, jamais foi, jamais será completamente vencido e aniquilado. Sempre, mesmo nas melhores épocas, ainda quando a Igreja obteve na sociedade a maior ascendência, houve homens bons e homens maus; mas viam-se as famílias subir em razão de suas virtudes ou declinar em razão de seus vícios; viam-se os povos distinguir-se entre si por suas civilizações, e o grau de civilização prender-se às aspirações dominantes em cada nação: elas se elevavam quando essas aspirações depuravam e subiam; elas regrediam quando suas aspirações levavam-nas em direção ao gozo e ao egoísmo. Entretanto, ainda que acontecesse que nações, famílias, indivíduos se abandonassem aos instintos da natureza ou a eles resistissem, o ideal cristão permanecia sempre inflexivelmente mantido sob os olhos de todos pela Santa Igreja.

O impulso imprimido à sociedade pelo cristianismo começou a diminuir, dissemos, no século XIII; a liturgia o percebe e os fatos o demonstram. Inicialmente houve a paralisação, depois o recuo. Esse recuo, ou melhor, essa nova orientação, foi logo tão manifesta que recebeu um nome, a RENASCENÇA, renascença do ponto de vista pagão na idéia da civilização. E com o recuo veio a decadência. “Tendo-se em conta todas as crises atravessadas, todos os abusos, todas as sombras no quadro, é impossível contestar que a história da França -- a mesma observação vale para toda a república cristã -- é uma ascensão, como história de uma nação, enquanto a influência moral da Igreja domina, e que ela se torna uma queda, apesar de tudo o que essa queda às vezes tem de brilhante e de épico, desde que os escritores, os sábios, os artistas e os filósofos substituíram a Igreja e A despojaram de seu domínio”.2


1 Vidimus nunc per speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut cognitus sum. (I Cor., XIII, 12). Agora vemos num espelho e em enigma: mas então veremos face a face. Agora conheço imperfeitamente: mas então conhecerei como sou conhecido (por intuição). (Conf. Mat. XVIII, 10; I Jo, III, 2). O Concílio de Florença definiu: Animae sanctorum... intuentur clare impsum Deum trinum et unum sicut est: As almas dos santos vêem claramente o próprio Deus, tal qual Ele é na trindade das pessoas e na unidade de Sua natureza.  
 
2 Maurice Talmeyr.


Fonte: DELASSUS, Monsenhor Henri. A Conjuração Anticristã - O Templo Maçônico que quer se erguer sobre as ruínas da  I g r e j a  C a t ó l i c a. Tomo I, Capítulo II – A Dupla Concepção de Vida, p.16-19.