28 de setembro de 2011

O Porquê das Heresias

 
O Porquê das Heresias
Do livro "As Grandes Heresias"
de Monsenhor Cristiani
Na oração sublime que os exegetas chamam "oração sacerdotal", Cristo pede ao Pai, com certa angústia, que os seus discípulos guardem para sempre a unidade: "Pai Santo, guarda em teu nome aqueles que me confiou, de modo que sejam um, como Nós... Não rogo somente por eles, mas também para aqueles que, movidos por sua pregação, creiam em mim, para que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, para que também eles também sejam um em Nós, a fim de que o mundo saiba que Tu me enviaste "(Jo XVII, 11, 20-24).
Cristo sabia o preço e a dificuldade da unidade, o que seria o principal sinal da verdadeira Igreja. Porém haveria divisões, rupturas da unidade, divergências de opinião, em uma palavra, heresias. Este é, de fato, o significado desta palavra de origem grega, que adotado pelo latim, foi quase desconhecido pela linguagem clássica, e, em vez disso, usado com freqüência pelos Padres da Igreja. De onde provém as heresias? Da diversidade de idéias, de características, temperamentos, e por fim, o próprio fato da liberdade humana. A Fé na Palavra de Deus é livre. Deus não força ninguém. Porém é inevitável que a fé exija por parte do homem um esforço de submissão e obediência. Esta obediência é uma opção. O papel das heresias é destacar essa opção. Por isso São Paulo disse: “É necessário que entre vós haja heresias para que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos” (I Coríntios, XI, 19).
E Tertuliano, 150 anos mais tarde, escrevia: “A condição de nosso tempo nos obriga a dar esta advertência, que não nos devemos admirar por causa das heresias, nem de sua existência, que foi predita, nem de que arruínem a fé em muitos, pois sua razão de ser é provar a fé, tentando-a”.
Se tentarmos verificar esta lei da prova necessária à fé, constataremos que ela faz parte das leis essenciais que regem os espíritos. Os anjos haviam sido submetidos a uma prova. Não lhe conhecemos o modo, mas constatamos o fato, na existência dos demônios (1). Eram anjos como os outros. Sucumbiram à prova. Os homens, por sua vez, devem ser “tentados”, isto é “provados”. É fácil ver o que acontece no aparecimento das heresias. No fato da heresia podem distinguir-se três aspectos diferentes: o aspecto filosófico, o aspecto paradoxal e o aspecto positivo.
Sob o ponto de vista filosófico, a heresia nasce do conflito ou do contraste entre a verdade revelada e os diversos sistemas filosóficos já estabelecidos nos espíritos sobre os quais recai essa revelação. A fé nem sempre encontra espíritos bem preparados para a receber. Cristo escolheu apóstolos sem instrução. Mas esses mesmos apóstolos tinham suas idéias, suas tradições, suas concepções sobre o reino messiânico. Os escribas e fariseus se julgavam bem mais esclarecidos que os humildes pescadores do lago da Galiléia. Em todos eles a fé encontrava obstáculos, em todos haviam preconceitos a vencer. E, passando dos Judeus para os pagãos, os conflitos de aspecto filosófico entre a fé e os sistemas em voga iriam ser ainda mais agudos. E até o fim dos tempos, seria a mesma coisa. Nem sempre é possível a concordância entre as filosofias humanas e a fé revelada. Os pensadores cristãos terão que executar uma tarefa imensa de adaptação entre a razão e a fé.

Do aspecto filosófico das heresias passamos, inevitavelmente, ao aspecto paradoxal. Entendemos com isso que a verdade revelada, pelo próprio fato de sua origem divina apresenta necessariamente sombras que a razão não consegue vencer. É o que exprimimos quando dizemos que a fé encerra mistérios. Refletindo sobre isso, compreendemos perfeitamente que uma religião sem mistérios não pode ser uma religião divina. A razão deve confessar sua impotência ante a fé vinda de Deus. E é isso que dá à heresia um aspecto paradoxal. Salienta a realidade antinômica e paradoxal do mistério da fé.

Enfim, a heresia se explica também pelo aspecto positivo. Com efeito, nem tudo está errado na heresia. Sempre contém uma intuição verdadeira, mas falseada pela interferência de um sistema filosófico que está em contradição com a fé, ou pela recusa implícita ou explícita do mistério da fé. Em toda heresia há, portanto, rebelião contra a verdade revelada e é nisso que se manifesta o sentido profundamente anticristão de qualquer heresia.

Êsse modo de ver a heresia é tradicional na Igreja. Mas sempre se tem insistido também no bem que pode surgir do grande mal que é a heresia. Tôdas as heresias foram ocasião de progresso na compreensão da fé, de confirmação da unidade no seio da Igreja.


(1) A respeito de Satã e os demônios, veja-se o tomo 21 da presente coleção.


Fonte: Retirado do livro “Breve História das Heresias” – Monsenhor Cristiani, Prelado da Santa Sé, Tradução de José Aleixo Dellagnelo, Sei e Creio, Enciclopédia do Católico no Século XX, Décima Terceira Parte, Irmãos Separados, Livraria Editora Flamboyant, São Paulo, 1962.
Foto: Autor desconhecido. Do álbum "Aedificabo Ecclesiam Meam", generosamente cedidas por Pedro Ravazzano ao Pedro Henrique.

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