Chesterton versus Nietzsche
Um leitor anônimo, que depois se identificou por email, sugere, por meio de um comentário ao post Há 80 anos, Chesterton “picava” Clarence Darrow em mil pedaços num debate atualíssimo, o seguinte: “Honraria mais Chesterton (e ele merece) se confrontado com Nietzsche, por exemplo. Melhoria o "nível" do debate. Fica a respeitosa sugestão.”
Sugestão feita, sugestão aceita. Vou tentar listar abaixo alguns trechos de Chesterton em que ele debate com Nietzsche e seus discípulos. Uma palavra prévia: a honra é toda de Nietzsche, não de Chesterton.
Nietzsche morreu em 1900 e Chesterton começou a escrever profissionalmente um pouco depois disso. Assim, ele não poderia ter debatido diretamente com o filósofo alemão. Contudo, ele percebeu bem a natureza maligna de sua filosofia e a debateu com todos os seus defensores, principalmente Shaw e Wells, mas não só. Vamos aos poucos trechos que escolhi.
Em Hereges, no capítulo dedicado a Bernard Shaw, Chesterton diz, por exemplo:
“Um sentimento de superioridade nos mantém calmos e práticos; os meros fatos fariam nossos joelhos tremerem com temor religioso. É o fato de que cada instante de vida consciente é um prodígio inimaginável. É o fato de que cada face nas ruas tem a incrível imprevisibilidade de um conto de fadas. A coisa que impede um homem de perceber isso não é qualquer clareza mental ou experiência, é simplesmente o hábito das comparações pedantes e fastidiosas entre uma coisa e outra. O Sr. Shaw – do lado prático, um dos homens vivos mais humanos – é, neste sentido, desumano. Ele foi até mesmo infectado, em algum grau, com a principal fraqueza intelectual de seu novo mestre, Nietzsche: a estranha noção de que quanto maior e mais forte fosse um homem, mais ele desprezaria as outras coisas. Quanto maior e mais forte é um homem, mais ele se prostra diante de um molusco.”
“E agora me lembro que o Sr. H.G. Wells realmente escreveu um divertido romance sobre homens que tinham o tamanho de árvores; e que aqui, de novo, ele me parece ter sido vítima desse vago relativismo. “O Alimento dos Deuses” é, como na peça do Sr. Bernard Shaw, em essência um estudo da idéia do Super-homem. E se abre, penso eu, mesmo sob o véu de uma alegoria semi-pantomímica, ao mesmo ataque intelectual. Não se pode esperar que tenhamos qualquer consideração por uma grande criatura a não ser que se conforme, de alguma maneira, aos nossos padrões. Pois se ultrapassa nossos padrões de grandeza, não podemos sequer chamá-la de grande. Nietzsche resumiu tudo o que é interessante na idéia do Super-homem quando disse: ‘O homem é uma coisa que tem de ser superada.’ Mas a própria palavra “superada” implica a existência de um padrão a nós comum e a coisa nos superando. Se o Super-homem é mais másculo que os homens, estes vão, claro, deificá-lo mais cedo ou mais tarde, mesmo que aconteça que o matem primeiro. Mas se ele é simplesmente mais super-másculo, eles podem lhe ser indiferentes como o seriam com uma monstruosidade aparente e despropositada. Ele deve se submeter ao nosso teste mesmo que seja para nos apavorar. A mera força ou tamanho são, em si, um padrão; mas sozinhos nunca farão os homens pensar que um homem seja superior. Os gigantes, nos antigos e sábios contos de fadas, são canalhas. Super-homens, se não forem bons homens, são canalhas.”
“Sem dúvida há uma melhor e mais antiga forma de adoração do herói. Mas o herói antigo era um ser que, como Aquiles, era mais humano que a própria humanidade. O Super-homem de Nietzsche é frio e sem amigos. Aquiles gosta tão loucamente de seus amigos que massacra exércitos na agonia de seu luto. O triste César do Sr. Shaw diz no seu desolado orgulho, “Aquele que nunca teve esperança nunca pode se desesperar.” O Homem-Deus do passado responde de sua horrível colina, “Há dor semelhante à minha dor?”[1] Um grande homem não é um homem tão forte que menospreze outro homem; é um homem tão forte que o preza mais. E quando Nietzsche diz, “Eu lhe dou um novo mandamento, ‘seja duro’”, ele estava, na realidade, dizendo, “Eu lhe dou um novo mandamento, ‘esteja morto’.” Sensibilidade é a definição da vida.”
“Essa fuga da brutal vivacidade e variedade dos homens comuns é, claro, uma coisa perfeitamente razoável e desculpável, desde que não se aspire a qualquer nível de superioridade. Quando ela chama a si mesma de aristocracia, esteticismo, ou uma superioridade em relação à burguesia é que sua fraqueza tem de ser justamente salientada. Fastio é o mais perdoável dos vícios; mas a mais imperdoável das virtudes. Nietzsche, que representa mais proeminentemente essa alegação pretensiosa de fastio, apresenta em algum lugar uma descrição – uma poderosa descrição no sentido puramente literário – do desgosto e desdém que o consome ao olhar pessoas comuns com seus rostos comuns, suas vozes comuns e suas mentes comuns. Como já disse, essa atitude é quase bela se pudermos considerá-la patética. A aristocracia de Nietzsche possui toda a sacralidade que pertence ao fraco. Quando nos faz sentir que não pode suportar os inumeráveis rostos, as incessantes vozes, a massacrante onipresença característica da multidão, ele terá a compreensão de qualquer um que tenha estado doente num trem ou cansado num ônibus. Todo homem odeia a humanidade quando se sente menos que um homem. Todo homem já teve seus olhos cegados pela humanidade como por uma neblina, já teve a humanidade em suas narinas como um fedor sufocante. Mas quando Nietzsche demonstra a incrível falta de bom-humor e de imaginação para nos instar que acreditemos que sua aristocracia é uma aristocracia de músculos fortes ou uma aristocracia de vontades fortes, é preciso enfatizar a verdade. É uma aristocracia de nervos fracos.”
No capítulo sobre a aristocracia e sua representação literária, Chesterton diz no mesmo livro, de forma esplêndida:
“Se alguém deseja encontrar um argumento realmente efetivo, abrangente e permanente a favor da aristocracia, descrito de maneira correta e sincera, faça-o ler, não os modernos filósofos conservadores, nem mesmo Nietzsche, faço-o ler as Bow Bells Novelettes.[2] Nietzsche e as Bow Bells Novelettes têm obviamente o mesmo caráter; ambos adoram o homem alto, de bigodes crespos e corpo hercúleo, e ambos adoram-no de uma maneira algo feminina e histérica. Mesmo aqui, contudo, a novellete facilmente mantém sua superioridade filosófica, porque atribui ao homem forte aquelas virtudes que comumente lhe pertencem, tais como indolência, brandura, uma benevolência assaz despreocupada e um grande desgosto em ferir o mais fraco. Nietzsche, ao contrário, atribui ao homem forte aquele desdém para com a fraqueza que somente existe entre inválidos. Não é, contudo, dos méritos secundários do grande filósofo alemão, mas dos méritos primários das Bow Bells Novelletes que pretendo agora falar.”
Em SERÁ O HUMANISMO UMA RELIGIÃO?, Chesterton diz:
“Todos devem ter notado nos mais recentes escritores a sobrevivência de um assaz dolorido modo de piedade. Eles não mais honram todos os homens, como São Paulo e outros democratas místicos. Não seria muito dizer que eles desprezam todos os homens; quase sempre (para fazê-los justiça) inclusive eles mesmos. Mas eles se apiedam, em certo sentido, de todos os homens, e particularmente daqueles que são dignos de piedade; atualmente eles estendem este sentimento quase desproporcionalmente a todos os animais. Essa compaixão pelos homens tem também a mancha de sua conexão histórica com a caridade cristã; e mesmo no caso dos animais, com o exemplo de muitos santos cristãos. Nada indica que um novo recuo de tais religiões sentimentais não libertará os homens até da obrigação de se apiedarem da dor do mundo. Não apenas Nietzsche, mas muitos neo-pagãos seguindo suas idéias, sugeriram tal insensibilidade como a mais alta pureza intelectual. E tendo lido muitos poemas modernos sobre o Homem do Futuro, feito de aço e iluminado com nada mais cálido do que o fogo verde, não tenho dificuldade de imaginar uma literatura que se orgulhasse de um desapego impiedoso e metálico. Então, talvez, fosse vagamente conjeturado que a última das virtudes cristãs morrera. Mas enquanto elas viveram, houve cristãos.”
Em seus 30 anos de The Illustrated London News, Chesterton frequentemente se referia a Nietzsche e seus asseclas, contra os quais ele sempre oferecia o senso comum tomista e a doutrina católica. Deixo aqui, para terminar, um trecho de um artigo no ILN, de 8 de março de 1924, intitulado Perseguição da Religião:
“É muito menor loucura esperar o fim do mundo para breve do que esperar o Super-homem para breve. Ainda assim, quantos evolucionistas fervorosos de nosso tempo escreveram seriamente como se o Super-homem fosse surgir na próxima semana? As coisas chegam realmente ao fim; e uma coisa projetada é geralmente reexaminada pelo projetista quando chega ao fim. Um homem que planta uma azaléia a vê florescer e fenecer e manifesta-se sobre o experimento; e não há nada irracional com um dia de julgamento, pressupondo um projeto. Mas não há nada no mundo a mostrar que uma azaléia por si mesma desenvolver-se-á em uma super-azaléia com todas as cores do arco-íris, apenas porque essa seria uma planta superior. O Super-homem foi apenas e tão somente um fantasma evocado do vazio pela imaginação de um louco; um homem literalmente louco chamado Nietzsche. Mesmo assim, quão vívida essa visão completamente absurda se tornou para muitos de nossa hesitante e débil geração! E a coisa mais estranha de todas é que tenham sido assim enfeitiçados alguns dos melhores cérebros.”
[1] Lamentações, 1:12. (N. do T.)
[2] Bow Bells Novelettes eram histórias curtas, melodramáticas, sensacionalistas e de grande sucesso, escritas por John Dicks para atingir a classe trabalhadora da Inglaterra vitoriana. (N. do T.)
Fonte:Blog do Argueth
Texto enviado por um leitor.
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