27 de setembro de 2011

Chaucer versus Stevenson


Chaucer versus Stevenson
 

Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de novembro de 1919

Nota inicial: Chesterton foi um dos críticos literários mais importantes das letras inglesas do início do século XX. Ele escreveu obras sobre Browning (1903), Dickens (1906 e 1911), Shaw (1909), Stevenson (1927), Chaucer (1932); escreveu também vários ensaios sobre a literatura vitoriana. Foi também um grande defensor da Idade Média, tendo escrito um livro sobre uma imaginária re-implantação dos valores e instituições medievais na Inglaterra vitoriana (A Volta de D. Quixote). As referências à Idade Média em suas obras são abundantes. Vislumbres de sua visão sobre esta época aparecem nas suas duas biografias mais famosas: a de São Francisco de Assis, de quem era devoto e a de Santo Tomás de Aquino. Vemos neste simples texto de jornal um gigante se levantando contra um minúsculo crítico, esmagando a pretensa e soberba crítica feita à Idade Média, crítica que se serviu de referências literárias muito caras a Chesterton. O grande escritor mostra que o crítico não conhece quem ele cita. Chesterton coloca as obras de Chaucer e Steveson na perspectiva escolhida pelo crítico e mostra o quanto os dois refletiam as visões de suas respectivas épocas e o quanto a época de Chaucer foi muito mais feliz e luminosa que a de Stevenson.


Algo que só pode ser considerado uma extraordinária explosão ocorreu no Daily News outro dia. Foi um protesto contra o crescente esclarecimento dos novos estudantes de História, que estão apresentando uma versão mais humana da Idade Média. O problema intitulou-se “Bons e Velhos Tempos” e começou com a denúncia do Deão da Catedral de São Paulo, Dr. Inge,[1] que dissera que as pessoas na era medieval foram provavelmente mais felizes ou alegres do que somos hoje. Alguns podem dizer que não seria difícil ser mais alegre que o Dr. Inge. Mas como considero que o Dr. Inge está errado em todo tipo de coisas, da Nova Teologia ao antigo ponto de vista oriental sobre o trabalho, divirto-me naturalmente quando ele está sendo especialmente caluniado por uma coisa sobre a qual ele está certo. O autor do artigo prossegue descrevendo suas impressões sobre a Idade Média, que são muito parecidas com as impressões de Catherine Morland[2] sobre “Os Mistérios de Udolpho”, cheios de gritos, correntes e escuridão. Ele diz que os trabalhadores eram servos; e invoca Stevenson para provar que os homens medievais estavam repletos de “um choroso medo da morte”. Finalmente, ele faz uma curiosa concessão, de que um solitário homem medieval pode ter sido feliz: “Miller, de Chaucer, pode ter sido feliz, mas, por outro lado, Miller era um bêbado.”

Este é seguramente o exemplo mais infeliz que o crítico poderia escolher para provar sua tese. Terá ele lido algo de Chaucer? Sustentará ele seriamente que todos em Chaucer são completamente miseráveis, exceto Miller? O Cavaleiro, o Cura, a Prioresa, para não dizer o Monge e a Esposa de Bath, eram todos completamente miseráveis, ou mesmo excepcionalmente miseráveis? Ou o Cavaleiro, o Cura e a Prioresa eram todos bêbados? São o Cozinheiro e o Capitão-de-mar mais sinistros em Stevenson? Fico feliz tanto em dizer que gastei muito tempo glorificando Stevenson, quanto em afirmar que não gastei tempo algum polemizando com o Dr. Inge. Sinto-me estranho tanto em opor-me àquele quanto em apoiar este. Mas como uma simples questão de fato histórico, parece-me muito claro que, se Stevenson realmente falou isto como uma crítica geral à Idade Média, Stevenson estava inteiramente errado. Sugerir que os homens medievais estavam enfraquecidos pelo medo da morte (em qualquer sentido não varonil) não é apenas inconsistente com os fatos sobre eles, mas é inconsistente com todas as outras acusações contra eles. O crítico que condena nossos infelizes pais fala, ao mesmo tempo, sobre luta e escravidão; geralmente expande esta crítica a uma visão de guerra universal; insiste que aqueles homens sangravam por estéreis votos de superstição e lutavam uns com os outros por fantásticas questões de etiqueta; zomba de seus esportes por terem sido rudes e perigosos, e de sua religião, por ter sido militante e repleta de mártires; reclama igualmente da frívola mortalidade das competições e da fanática mortalidade das cruzadas; e então ele resume tudo, num movimento de sublime consistência, dizendo que aqueles homens eram fracos que temiam a morte.

A verdade é que a alegria de Stevenson foi muito mais louvável que a alegria de Chaucer; precisamente porque Chaucer viveu num mundo muito mais alegre, e vinha de uma tradição muito mais alegre. Stevenson viveu num mundo mais mórbido, e vinha de uma tradição muito mais mórbida. Terá o crítico, que fala sobre as trevas da Idade Média, considerado seriamente pelo que os antepassados imediatos de Stevenson substituíram aquelas trevas? Deveremos nós dançar com prazer ante a emancipação que substituiu a triste figura da Prioresa pela alegre figura de Thrawn Janet?[3] Os Homens Felizes de Gordon Darnaway[4] eram mais felizes que os Homens Felizes de Robin Hood? Foi uma grande glória para Stevenson que ele não tenha sido esmagado pelo credo calvinista de seus antepassados, ou pela ausência de credo ainda mais vazia e fatalista de seus contemporâneos. Mas qualquer um com uma percepção de tais coisas sentirá que a sanidade de Stevenson foi uma luta; ao passo que em Chaucer a sanidade era um estado. A sanidade de Stevenson era realmente peculiar a Stevenson; sendo parcialmente uma esplêndida reação da sanidade moral contra a insanidade física. A sanidade de Chaucer era a sanidade da época de Chaucer. Pois a Idade Média, como tudo o mais, teve seus altos e baixos; e as coisas não iam tão bem quando os feitos de São Luis estavam sendo escritos como quanto quando eles estavam sendo realizados. Nosso severo crítico, contudo, não se perturba por nenhuma dessas sutis distinções; ele as denomina, com um abrangente sarcasmo, “Os Bons e Velhos Tempos”, e parece supor que admiramos tudo, de Vortingern[5] a Valois.[6] As idéias de Stevenson são, todavia, uma questão mais interessante; e penso ser óbvio que elas foram, neste caso, tão individuais quanto um pesadelo. A noção de Stevenson sobre o medievalismo é que era uma ilusão. Foi uma ilusão muito artística; porque ele era um grande artista. Mas lemos nela seu próprio puritanismo imaginativo, pois este era o único entusiasmo teológico que ele jamais conheceu. Ele iluminou os grandes edifícios góticos com uma espécie de luz infernal que luzia desde baixo, tal que as sombras eram caprichosas, mas falsas. Ele projetou um luar calvinista sobre as ruínas católicas.

O resto é mera questão de História; e ninguém tem de se meter a fim de impedir que a História seja aprimoradamente escrita. É tão falso descrever uma cidade medieval, e dizer que os trabalhadores eram servos, quanto dizer que os arautos eram padres, ou que os monges eram cavaleiros, ou que os arcos eram armas de fogo. Isto simplesmente não é factual; desconhece toda a história dos contratos, das guildas, do crescimento das cidades muradas; de metade dos mais formidáveis fatos da Idade Média. Havia servos na Idade Média; mas a servidão era simplesmente resquício do estado servil da antiguidade pagã. A peculiar realização do medievalismo não foi a servidão, mas a dissolução da servidão. Mas os artesãos das cooperativas não eram servos, em nenhum sentido ou por qualquer argumento. Eles eram sindicalistas comerciais, cujos sindicatos eram mais ricos, mais responsáveis, mais reconhecidos pelo Estado, e mais respeitados como contribuintes da cultura, do que são hoje nossos próprios sindicatos. Eles exigiam um bom pagamento, como fazem os nossos sindicatos; eles também exigiam um bom trabalho do artesão, o que os nossos sindicatos não conseguem fazer.

Esta saudável visão da idade das guildas não é romântica; é realista. A visão sombria de tal época é que é romântica. Um mundo contendo nada mais que caça às bruxas e barões maldosos seria um lugar ruim de se viver; mas ninguém nele viveu. Um mundo de guildas e camponeses gradualmente emancipados era um lugar, longe do perfeito, para se viver; tinha defeitos reais que podem ser discutidos de forma justa, incluindo seus méritos. Mas este era um mundo real; e será necessário mais que um grito tardio dos Bons e Velhos Tempos da rainha Vitória para impedir que uma nova geração considere aquele mundo real verdadeiramente interessante.


[1] William Ralph Inge (1860-1954) foi um prelado anglicano, deão da Catedral de São Paulo, em Londres, de 1911 a 1934. Seu pessimismo lhe valeu o título de “Deão Soturno”. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[2] Ingênua heroína de “Abadia de Northanger”, obra de Jane Austen, que gostava de romances góticos de terror, tal como “Os Mistérios de Udolpho”, de Ann Radcliffe. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[3] A Prioresa é a personagem mais vívida e amante da vida da obra Canterbury Tales, de Chaucer. Thrawn Janet é uma velha feia, com ares de bruxa, que dá título a um conto de Stevenson; possuída pelo demônio, ela se enforca. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[4] Ver The Merry Men and Other Tales, de Stevenson. (Nota da edição da Ignatius Press das obras escolhidas de Chesterton)
[5] Guerreiro do século V, líder dos antigos britânicos. (N. do T.)
[6] Casa real francesa, ramo da dinastia capetinga. Reinou na França do século XIV ao século XV (N. do T.)


Texto enviado por um leitor

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