A naja é uma serpente terrível. Ela cospe seu veneno a dois metros de distância. Apontando para os olhos da vítima, cega-a, temporária ou definitivamente, e assim esta se torna presa fácil.
Desde as nossas origens, a serpente tem o triste privilégio de representar o demônio, em razão da malícia e da mordida mortal que a caracteriza. Parece no entanto que, passados alguns séculos, a técnica demoníaca evoluiu. Não contente em nos morder o calcanhar, como a víbora, descobriu um veneno que nos cega. A víbora tornou-se naja. Vejamo-lo.
No início do Cristianismo, o demônio atacava a fé suscitando heresias. Mas a Igreja valeu-se dessas negações fazendo delas ocasiões para proclamar seus dogmas, ainda com mais força e clareza. “Oportet haereses esse”, é preciso que haja heresias (1 Co. 11, 19). Para fazer surgir almas e uma Igreja negadoras do objeto da fé, seria preciso cegar a inteligência humana, tornar-lhe impossível qualquer contato com o verdadeiro. Assim fazendo, a fé se diluiria no relativismo, as almas se perderiam sem o perceber.
Como é fácil de constatar, o atentado obteve êxito.
Quem nunca fez a seguinte experiência: falar durante uma hora com uma pessoa com o propósito de levá-la de volta à Igreja; argumentar com toda a sabedoria; responder claramente a todas as suas objeções; e, no entanto, ouvi-la dizer ao despedir-se: “Tudo o que você disse é interessante, mas é a sua verdade. O que importa é estar bem onde nos encontramos”? Ou: “Muito bem... tudo isso era verdade... no passado”.
Estas reflexões revelam um mal profundo e universal. De fato, dizer que a verdade é subjetiva é atentar contra a nossa própria inteligência, na sua estrutura íntima e no seu exercício natural. É interditar qualquer conhecimento verdadeiro.
Nesta análise, seguiremos o papa S. Pio X na sua encíclica Pascendi (8 de setembro de 1907). Sua Santidade enxergou numa falsa teoria do conhecimento — o agnosticismo — o ponto de partida do modernismo. E assim resume suas causas: “Trata-se da aliança da falsa filosofia com a fé, as quais, ao se misturarem, formam uma massa cheia de erros, danificando todo o sistema da fé”.
Entre os remédios contra o modernismo, S. Pio X destaca, como “o melhor”, “o ensino da filosofia que nos legou o Doutor Angélico” (Santo Tomás). E advertiu os professores “de que desprezar Santo Tomás, sobretudo nas questões metafísicas, traz prejuízos graves”.
A fim de descobrirmos em que consiste, exatamente, a verdade, acompanharemos Santo Tomás no seu primeiro artigo, que leva o título: “A verdade está nas coisas, ou tão-somente na inteligência?”
A linguagem corrente utiliza o termo “verdade” em dois sentidos. Para começar, diz-se que uma coisa é verdadeira, por exemplo: este cinto é de couro legítimo (verdadeiro), tal acontecimento nos causa verdadeira felicidade, tal homem é um verdadeiro artista. Quer-se dizer com isso que a coisa em questão realiza plenamente sua definição, ou que ela corresponde perfeitamente à intenção de quem a faz. Essa verdade se chama verdade ontológica.
Por outro lado, empregamos o termo “verdade” para dizer que tal propósito é verdadeiro, tal asserção é verdadeira, ou, ao contrário, que tal conclusão é falsa. É a verdade lógica.
Dessas duas acepções, qual convém mais propriamente à verdade? A resposta de Santo Tomás vai-nos dar a definição de verdade.
Uma vida consagrada à verdade é uma vida sacrificada, por certo, pois se trata de restaurar a ordem destruída, isto é, a primazia da contemplação. Mas ela também está subentendida na alegria e no entusiasmo da pesquisa, no maravilhar da descoberta.
Seu caminhar pode resumir-se em três proposições.
1. Há verdade quando há conhecimento completo.
2. Há conhecimento quando há certa presença do objeto naquele que o conhece, e, pois, certa “conformidade” da inteligência à coisa.
Estas são as duas primeiras asserções de Santo Tomás que nos interessam aqui, para que definamos o que é a verdade.
1) Há Verdade Quando Há Conhecimento Completo
Santo Tomás parte do princípio que verificamos no preâmbulo: “Chama-se verdadeiro aquilo para o qual tende a inteligência”.
Ora, aquilo para o qual tende a inteligência é o conhecimento. Ela busca conhecer o que a cerca, tão profundamente quanto possa.
A verdade é, portanto, o caráter do nosso conhecimento: estar na verdade, conhecer as coisas realmente. “O verdadeiro é o termo em que o conhecimento repousa, seu bem, sua perfeição, seu coroamento; ao passo que o erro é o seu insucesso, seu aborto, seu mal, sua imperfeição”.
Se digo, por exemplo, que tal homem é marceneiro, celibatário e protestante, enquanto ele de fato é confeiteiro, casado e católico, eu não o conheço realmente, não estou na verdade.
A rigor, não há conhecimento completo que não seja verdadeiro. Um conhecimento falso não é um co-nhecimento.
“Do mesmo modo que a essência de um retrato é conformar-se ao modelo, e, se não o faz, já não é um retrato, assim também a natureza do conhecimento é corresponder ao seu objeto, adaptar-se exatamente a ele; se não o faz, não existe como conhecimento; se o faz, está tudo dito, ele é verdadeiro.”
(Notemos, entretanto, que um conhecimento pode ser inteiramente verdadeiro sendo limitado. Este é sempre o nosso caso. Não sabemos absolutamente tudo e, no entanto, sabemos algumas coisas.)
2) Como Se Realiza o Conhecimento?
Esta questão nos conduzirá à noção exata da verdade. Santo Tomás diz, sem explicações: “Há conhecimento na medida em que o conhecido está no conhecedor”.
Aqui reside a dificuldade: Como o objeto conhecido pode estar naquele que conhece?
Perguntemo-lo, antes, à linguagem corrente. Numerosas expressões traduzem a idéia de conhecimento, com termos que expressam certa posse, uma tomada:
Recebe-se uma informação; compreende-se (aprende-se com) um problema; assimila-se uma idéia; abraça-se toda uma questão; possui-se um motivo, ou, ao contrário, ele nos escapa.
Certas comparações são tomadas da nutrição: fala-se em devorar um livro; nutrir-se da Bíblia; ter digerido bem um texto (= tê-lo compreendido bem). Diz-se, também, que tal discurso nos enriqueceu.
Essas expressões sugerem a idéia de que conhecer é tomar, captar algo de real, possuí-lo em si de certa maneira. Por exemplo: quando acabamos por surpreender uma ação encoberta, ou por saber um segredo, sentimos perfei-tamente que, daí em diante, levaremos conosco esse fato, ou nos sentimos um pouco como o ladrão que leva seu roubo.
Em resumo, o conhecimento é um ato pelo qual a inteligência toma o objeto que conhece, tornando-o presente nela de certa maneira.
Essa presença não poderia ser física, certamente. Não pode ser senão espiritual, dado que a inteligência que a recebe é, ela própria, espiritual.
Não nos proporemos, aqui, a questão a respeito de como uma coisa material pode estar presente numa inteligência espiritual. Vamo-nos contentar em constatar que essa presença é uma informação.
A inteligência, antes de conhecer, é como um quadro-negro (“tabula rasa”, disse Aristóteles). Quando é posta em contato com seu objeto, ela recebe um aperfeiçoamento, como se fosse um acréscimo, que não é outra coisa senão um simulacro do objeto. De certa maneira ela “se torna” seu objeto pela informação que recebe dele. A inteligência se transforma de acordo com o seu objeto, e se modela sobre ele.
“O objeto conhecido é a perfeição daquele que conhece”, diz Santo Tomás.
Vinculemos esses resultados à nossa primeira afirmação (“Há verdade quando há conhecimento completo”), e seremos, então, levados a constatar o que é a verdade: “A verdade está na inteligência na medida em que esta se torna conforme à coisa inteligida”.
“Tornar conforme” quer dizer que a “forma”, isto é, a determinação que aperfeiçoa daí em diante a inteligência, a luz que a clareia, é uma similitude da coisa conhecida.
“A inteligência que conhece é verdadeira (ela está na verdade) enquanto tem uma similitude com a coisa conhecida, similitude que é sua forma tanto quanto a conhece.”
“A inteligência é verdadeira na medida em que está identificada (adaequatur) à coisa conhecida.”
“Encontra-se a verdade na inteligência na medida em que ela apreende a coisa tal qual é.”
Isso é o que exprime esta definição de verdade, formulada por um filósofo árabe do século X (Isaac), e reproduzida aqui por Sto Tomás: “Veritas est adaequatio rei et intellectus”: A verdade é a adequação (= confor-midade, correspondência) entre a inteligência e a coisa”.
Esta definição é completa? Não, porque resta precisar em que ato da inteligência reside a verdade (o julgamento). Este será o segundo artigo de Santo Tomás. Mas agrada por enquanto, porque é suficiente para responder à questão que se põe: a verdade reside, com propriedade, na inteligência. Ela está nas coisas secundariamente.
Ficaremos nós, também, com esta definição, porque ela lança uma luz muito forte sobre o nosso objeto, e vai permitir-nos responder, já, a certas opiniões errôneas.
A lição principal que ela nos dá consiste em que a verdade é uma relação entre dois termos: um sujeito que conhece e o objeto conhecido. Relação de conformidade e, portanto, de dependência, que resulta de ter sido o sujeito transformando, aperfeiçoado por tal ou qual característica do objeto.
Os erros mais importantes que encontramos a esse respeito provêm, precisamente, do esquecimento da existência de um dos dois termos da relação, isto é, do objeto conhecido. Apontaremos quatro.
— É a sinceridade que faz a verdade.
— É a maioria que faz a verdade.
— É orgulho pretender possuir a verdade.
— A verdade evolui.
RESPOSTAS A ALGUMAS OBJEÇÕES
I — SINCERIDADE E VERDADE
“O que conta é estar bem consigo mesmo... estar de acordo com a sua consciência... ser feliz como se é... dizer o que se pensa... o que vale é a espontaneidade da palavra ou do gesto.”
Essas reflexões voltam, freqüentemente, aos lábios dos nossos contemporâneos. Elas desenvolvem uma mesma idéia: é a sinceridade que faz a verdade. Estar na verdade consiste, então, em estar conforme a uma coerência interior, em não encontrar nenhum obstáculo, nenhuma dúvida no desenvolvimento da nossa vida psicológica.
A primeira resposta que podemos dar a essa opinião é constatar que os asilos estão cheios de pessoas coerentes consigo mesmas, que seguem sua consciência. Pode-se até pensar que os maiores inimigos da humanidade, como Herodes ou Stalin, tenham sido homens sinceros. Esse critério de verdade é, pois, muito fraco!
Isso aparece ainda mais claramente se nos reportarmos à definição de verdade. Limitar a verdade à sinceridade é negar um dos termos da “adequação”. A verdade deixa de ser a conformidade com a coisa real que ela conhece. É fazer do conhecimento como que um jogo solitário. Para que haja verdade é preciso uma comparação, um contato com o real. É o que expressou Aristóteles: “Tu não és branco porque julgamos que sejas branco, mas, ao contrário, julgamos que és branco porque o és na realidade. Donde é manifesto que é a disposição da coisa (aquilo que a coisa é em si mesma) que é a causa da verdade do pensamento e da palavra...” Não se pode expressar melhor o caráter objetivo da verdade.
II — MAIORIA E VERDADE.
A primeira opinião a que respondemos destruiria a verdade limitando-a à conformidade de um homem consigo mesmo.
A segunda que se nos apresenta faz consistir a verdade na conformidade com a opinião da multidão. O que diz a maioria das pessoas, “o que se diz”, “o que pensa a opinião pública”, os produtos do sufrágio universal, ou até “aquilo que se diz na televisão”, aí estão os critérios da verdade de muitos dos nossos contemporâneos.
O mal é mais grave ainda, quando assistimos, simplesmente, a uma demissão da inteligência. Como a opinião anterior, esta não só não dá conta do objeto real por conhecer, mas, em acréscimo, destrói o próprio sujeito, interditando-lhe sua atividade própria de apreensão imediata do real, de raciocínio, de verificação. Ela se afasta ainda mais da definição da verdade. Reco-nheçamos, da mesma maneira, que em certos casos, supondo que os homens sejam direitos e bem-informados, o que foi crido por todos, e por toda a parte, tem certa chance de ser verdadeiro. Porém esse acordo universal não é mais que um indício de verdade, não é um critério absoluto.
III – POSSE DA VERDADE: ORGULHO OU HUMILDADE?
A terceira opinião toma a forma de reprovação freqüentemente dirigida às testemunhas da verdade: Dizeis ter a verdade? Que orgulho! Que auto-suficiência! Filósofos bem mais inteligentes que vós têm sabido reconhecer seus limites. Ademais, as constantes controvérsias entre os homens bem provam a inanidade da vossa pretensão. Valeis mais que os outros? A isto respondemos: sim e não.
Sim, é orgulho pretender ter a verdade, se nós mesmos a fazemos. Sim, é orgulhosa a inteligência que deseja ser a regra da verdade, e que se esforça por construí-la. Veremos nos artigos seguintes que esse é, precisamente, o erro fundamental dos filósofos contemporâneos. Citemos, a título de exemplo, Jan Jaurès (1859-1914), mestre do pensamento daqueles que nos governam: “Toda verdade que não vem de nós é uma mentira. Se o próprio Deus aparecesse diante das multidões de forma palpável, o primeiro dever do homem seria recusar obediência, e considerá-lo como a um igual com quem discute, e não como a mestre que o tivesse submetido”.
Ao contrário, a definição da verdade que resgatamos mostra-nos o estado de total dependência da inteligência em face do real.
Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade é, portanto, a marca de certa humildade. É o sinal de que a inteligência soube deixar–se gravar e ser informada.
É um sinal muito importante que nos impede de seguir por caminho falso.
A inteligência não aborda a verdade como um superior. Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligência está a serviço da verdade, e não o inverso. Serviço afetuoso, por certo, e entusiasmado, porém respeitoso.
São Bernardo desenvolve essa idéia no início do seu tratado sobre Os Graus da Humildade e do Orgulho. A verdade a que ele visa é o próprio Nosso Senhor, a Verdade. Mas o que ele diz também se aplica, muito bem, às parcelas de verdades que podemos esperar.
Comenta a palavra de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo. 14, 16). “O Caminho é a humildade que conduz à Verdade.” Para justificar sua interpretação, cita Nosso Senhor: “Aprendei de mim, que sou doce e humilde de coração” (Mt. 11, 29). “Ele se oferece, pois, como modelo de humildade e doçura. Se for imitado, não se andará nas trevas, mas à luz da vida” (Jo. 8,12). “Ora, o que é a luz da vida senão a verdade, a verdade, digo, que ilumina todos os homens deste mundo e lhes mostra o verdadeiro caminho? [...] Considero o caminho, isto é, a humildade, e desejo o fruto, quer dizer, a verdade. [...] O conhecimento da verdade se encontra no alto da escada da humildade.”
S. Bernardo cita, igualmente, e comenta no mesmo sentido, a prece de Nosso Senhor (Lc. 10, 21): “Eu vos dou glória, ó meu Pai, Senhor do Céu e da Terra, cujo conhecimento das coisas encobristes — isto é, a verdade — aos sábios — isto é, aos orgulhosos — e que revelastes aos pequenos — isto é, aos humildes.” “Por aí se vê que a verdade é coberta para os soberbos e revelada aos humildes.”
IV – A VERDADE EVOLUI
Esse novo slogan também é freqüentemente encontrado: “O que dizeis é interessante, mas valia noutros tempos”; “o que era verdadeiro ontem, já não o é hoje”.
A definição de verdade continua a nos dar a resposta. O critério da verdade é a conformidade da inteligência ao real. Daí, se o objeto conhecido não muda, a verdade não mudará. Ao contrário, se o objeto muda, o que dizíamos dele já não será verdadeiro.
Se encontro um menino, por exemplo, que mede um metro e se afirmo: “Ele mede um metro”, estou na verdade. Se alguns anos depois, ao passo que o menino cresceu 20 cm , eu continuo a afirmar que ele mede um metro, estou em erro. A verdade mudou. Ao contrário, se afirmo do menino, nessas duas épocas, que ele tem natureza humana e, portanto, que deve obedecer a tais leis e que é feito para o Céu, então digo uma verdade que não muda.
A permanência (ou, ao contrário, a variação) da verdade decorre da permanência (ou mudança) do objeto. Decorre da característica objetiva da verdade.
Eis, portanto, as características da verdade que a sua definição nos permite conhecer, e que essas objeções fizeram ressaltar: a verdade é objetiva, é imutável (na medida em que o objeto é imutável).
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Ave Cor Mariae!